23 de jul. de 2008

Ela é pop

por Everaldo Vasconcelos

O mundo de uma menina é amplo e maravilhoso. Não se limita às suas bonecas; estende-se além do espaço físico para um mundo particular, tal qual universo paralelo a este em que vivemos. Kátia guardava algumas dezenas de bonecas, pequenos objetos como tampinhas à guisa de panelas e outras coisas de igual monta. Em dias especiais todas saiam de suas caixas e assenhoreavam do quarto. Neste dia mágico a principal tarefa do dia era viver este mundo extraordinário.

Raulzito em seu quarto promovia uma guerra entre os bonecos plásticos de soldados, outros improvisados com ossinhos e mais alguns que tinham somente os cotocos sobreviventes das batalhas anteriores. As armas eram letais. A baladeira que atirava pequenos seixos e até mesmo soldados-bombas voadoras. Os combates valiam por si mesmos como um esporte cujo objetivo era matar, morrer e ressuscitar e assim por diante em um perigoso circulo vicioso. Era perceptível o intenso prazer do menino com aquele brinquedo belicoso.

Numa pausa, depois de um grande ataque, Raulzito escutou a irmã, cantando em seu mundo privado uma canção de festa. Imediatamente, acendeu-se nele outro espírito, e vindo das profundezas das planícies bárbaras, tomou posse de suas idéias a invasão do país vizinho. Deu um sorriso maroto e imaginou aquelas bonequinhas correndo loucas sendo estraçalhadas pelas bombas e pelos soldados ferozes. A ordem já estava dada. A infantaria iria entrar e acabar com a festa.

Esgueirando-se como uma cobra, atravessando um terreno difícil e minado, com os tiros zunindo sobre a cabeça. Ele avançou pelo corredor da casa rente ao chão protegendo a si e aos seus comandados. Momentos de tensão e coragem. Era preciso surpreender o inimigo.Não permitir que tivessem qualquer reação.

Da cozinha que dava para o corredor Dona Clara, viu o filho passar conversando consigo mesmo, na dura tarefa de falar por todos os seus personagens.

"Raulzito! O que você está aprontando?" Ela advertiu.

Ele continuou impávido, atento aos momentos cruciais de vida ou morte.
Kátia estava inocente em seu brinquedo.As bonecas de pano, todas arrumadas e dispostas em um corredor por onde deveria passar a noiva, a boneca Marieta, para casar-se com o boneco Juvenal.A música nupcial era solfejada pelos lábios da menina.

Raulzito atacou. Sem que os presentes tivessem tempo para qualquer reação, a cerimônia solene transformou-se em um evento de horror. A guerra não fazia parte dos planos de Kátia. A truculência das bombas e dos tiros de metralhadora cantados pela boca do menino invadiu todo o ambiente.

Choro e ranger de dentes. A pobre boneca Marieta jazia sem braços e pernas em um recanto; noutro era possível ver o boneco Juvenal decapitado e sem pernas; espalhadas pelo quarto pedaços de bonecas e artefatos daquele mundo todos completamente destruídos.

Raulzito fugiu pelo corredor. Pensava consigo que a missão havia sido cumprida. Era este o destino dos soldados: Fazer a peleja pelo simples prazer de lutar.

Kátia atacou o general adversário ainda no corredor com uma ferocidade estupenda. Saltou sobre as suas costas e começou a bater a sua cabeça no chão agarrando-se em seus cabelos. Ele mal pode reagir. Ela pegou um vaso de flores que estava próximo e continuou a bater-lhe com violência. Ela não falava, apenas grunhia como um animal ferido. Ele somente conseguiu gritar:

"Mãe, socorro!"

Dona Clara correu e ao ver a cena pegou Kátia e tentou apartá-la do irmão. Puxou-a fortemente pelo braço. As duas nunca tiveram uma relação pacífica. Kátia pressentiu a desvantagem e correu para o colo do pai que estava na sala de jantar.

Diante da multidão que avançava o pai declarou.

"Ninguém bate em Kátia"

"Mas ela agrediu o irmão", justificou a mãe.

"Ela teve os seus motivos", ele arrematou.

"Por que você protege tanto esta menina?", reclamou a mãe.

"Ela é Pop!", ele disse fechando a discussão.

Raulzito sentiu o sabor amargo da guerra.

24 de mar. de 2008

A Morte do Cágado

Por Everaldo Vasconcelos


Na sala reinava silêncio absoluto. No quadro-negro um problema de matemática estava sendo escrito. Cada qual fazia o lápis riscar o caderno com uma lentidão calculada.


"Já terminaram de copiar este? Perguntava a professora.


"Nãooooo!"


"Rápido, que ainda tem mais três", replicava a mestra.


Todos eram solidários naquele exercício de impedir que houvessem mais questões para a tarefa de casa.


Quando a sirene tocou avisando a hora do recreio, todos saltaram das cadeiras, sem dar ouvidos aos reclamos e correram para fora.


Menos um. Raulzito saiu lentamente da sala.


Uma grande algazarra se estabeleceu no pátio. De todos os lugares corriam crianças. Algumas paravam em pequenos círculos para fazerem o seu lanche. Outros já se organizavam numa partida de bolinhas de gude. Raulzito tentava se aproximar, mas ninguém lhe dava qualquer atenção. Ele sabia que vinha aprontando muito com a turma.


Todos pareciam se encaixar em alguma brincadeira.


Raulzito caminhou sozinho chutando algumas pedras. Algumas resvalaram sobre a cabeça das meninas que estavam numa brincadeira de garrafão.


"Cuidado", gritaram.


"Deixe eu brincar?", ele pediu.


"Tudo bem, mas você vai ser o pega", disse Kátia.


Um grande desenho feito na areia de uma enorme garrafa, Raulzito era o pega, responsável pela guarda do mesmo; as meninas deviam atravessar as paredes do garrafão sem serem vistos por ele. Senão precisariam correr para tocar na mancha e ficarem livres da lixa, uma pancadaria de tapas como castigo. Mal a brincadeira começou e Maria desleixadamente foi pega, ela ficou indecisa ainda procurando o local que havia sido fixado para a mancha.


Todos escutaram a imensa tapa que a pobre coitada levou nas costas.


"Você está expulso de nossa brincadeira", decretou Kátia.


Raulzito saiu em direção a um pequeno pomar que havia na escola. Ele sabia que era melhor ficar distante. Ao menos por aquele dia. No muro do pomar havia uma rachadura, que estava tapada com algumas madeiras. De lá era possível observar a estrada de barro batido que passava ao lado da escola.


Ao longe se podia avistar aquela criatura estranha, com o seu casco negro, seus passos lentos e firmes. Era um cágado, que alguns conheciam pelo nome de jabuti, um réptil antiqüíssimo, parente das tartarugas marinhas. Era uma cena memorável sob o sol causticante daquela tarde de verão. Um legítimo representante da família dos quelônios, caminhando pacientemente pelas margens da rodagem.


Raulzitou observou quando o cágado principiou a sua travessia de um lado ao outro da estrada. Ao longe, vinha um caminhão em disparada. Pareceu aquela estória da corrida do coelho e da tartaruga, que a professora tinha contado na aula de português, mas neste caso, o réptil estava pebado. Atrás do fenemê subia o poeirão.


"Que bicho mais leso!"Pensou Raulzito.


O animal vinha batendo pernas tranquilamente. Não deu tempo nem de gritar, ou jogar uma pedra, que teria sido até mais eficaz. Os pneus pegaram o casco daquela criaturinha indefesa que foi arremessada para dentro do mato.


Raulzito pegou-o e conduzi-o para um dos recantos do muro externo. Do alto, no primeiro andar, onde ficava a diretoria da escola, de uma janela a irmã Neide assustou-se quando viu o menino fora do prédio. Ela compadeceu-se daquela atitude tão caridosa de auxílio a um animalzinho ferido.


O acidente havia aberto uma enorme ferida no casco. Dava para ver as entranhas. O bicho se contorcia de dor e agonia. Raulzito observou o sangue, os movimentos doloridos, mas resolveu fazer uma pequena experiência. Primeiro colocou um pouco de areia na ferida. A dor tornou-se ainda mais intensa, o que era perceptível pela perninhas que se remexiam um pouco mais rápidas. Então Raulzito pegou alguns seixos maiores e enfiou no casco. O Cágado agonizava. Então, ele passou a colocar pequenos gravetos na ferida.


A irmã Neide apavorou-se com a crueldade do menino. Largou tudo desceu apressada pela escadaria, sendo interrompida aqui e ali, ora por professoras, ora por funcionárias, ora por alunos que a adoravam.


Não havia tempo para dar atenção a ninguém.


De qualquer forma o cágado iria morrer, é verdade, com ou sem as experiências crueis de Raulzito, mas quando animal não deu mais qualquer sinal de vida, o menino sentiu algo que nunca tinha se passado em seu coração. Aquele ser vivo morrera em suas mãos e ele sentiu toda a dor do mesmo. Deu-lhe uma gastura na alma. Ele sentiu-se profundamente triste. Cobriu o defunto com folhas de mamona. Pensou em rezar o "Santo Anjo do Senhor", mas sentia-se um diabo. Saiu caminhando, voltou para o pomar e foi em direção a sua sala de aula.


Irmã Neide cruzou por Raulzito sem se dar conta imediatamente. Parou. Achou estranho o semblante da criança. Era algo de uma desolação fatal. Algo tinha ocorrido. Ela esqueceu de dar a reprimenda que já vinha na ponta da língua. Todos notaram que ele naquele dia havia sido tomado por uma tristeza de morte.



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11 de fev. de 2008

O Guerreiro Tuareg

conto de Everaldo Vasconcelos


A irmã Neide caminhou apressada pelo corredor do colégio. Ela vinha esbaforida preocupada com algo que estava acontecendo no pátio.O seu pensamento estava como um vulcão prestes a explodir. Uma instituição antiga, que antes havia sido o seminário arquidiocesano e que atualmente se erguia imponente com as suas paredes pintadas de azul celeste no alto do Bairro do Cordeiro! Os passos dela iam se atropelando. A sua respiração ofegante e os cabelos brancos desalinhados mostravam que ela estava muito preocupada.

- "Que foi que houve, irmã?" Perguntou uma das zeladoras.

Ela não respondeu. Passou feito uma bala sem dar atenção a ninguém.

A Irmã atravessou o pátio.

Uma indefesa lagartixa correu apressada pelo muro alto que cercava o pátio. O céu era de um azul intenso. O vento estava seco e quente. Raulzito corria com desenvoltura sobre o estreito caminho. Armou novamente a baladeira e atirou fulminando o réptil. Era um guerreiro, um caçador primitivo. Com a camiseta da educação física cobria o rosto como um tuareg do deserto do Saara. Embaixo os seus colegas prosseguiam jogando futebol.

- "O que está acontecendo aqui?" Perguntou para professor de Educação Física.

- "Nada. Está tudo sob controle".

- "Como sob controle? Há um menino correndo sobre o muro do colégio atirando pedras em todas as direções".

- "Foi melhor assim..."

- "Ele está sob a sua responsabilidade..."

- "Irmã, com todo o respeito, mas este menino não deveria estar nesta escola. Ele é um psicopata mirim. Quase quebrou as pernas de dois outros garotos."

O professor continuou a sua aula. A irmã viu aquela figura correndo sobre o muro.

- "Raulzito, desça já daí!" Ela ordenou com aquela força na voz que faria qualquer outro choromingar.

Ele continuou desembestado em sua guerra particular. Ela tentou várias outras vezes sem sucesso. As pedras continuaram a voar em todas as direções.

- "Vou mandar chamar a sua mãe!" Ela ameaçou.

- "Não tenho mãe!" Foi a resposta.

- "Você é um menino de família."

- "Não tenho família, vivo jogado na rua".

- "Não diga isso, o seu pai é uma pessoa tão distinta".

- "Meu pai morreu. Sou sozinho no mundo."

- "Meu filho..."

- "Você não é a minha mãe".

- "Este muro é muito alto..."

- "Sai da minha frente senão eu lhe atiro uma pedra nos peitos."

A irmã ficou desolada. Era como se ela tivesse o próprio capeta estudando em sua escola. Benzeu-se três vezes para afastar este pensamento do juízo.

- "Não adianta rezar não, que eu só faço o que quero. Vou descer porque acabaram-se as pedras".

Quando ele pulou para o chão o futebol parou. Todos ficaram apreensivos. Ninguém teve coragem de dar um sorriso. Todos permaneceram estáticos com receio de alguma reação violenta. Ele arrumou a camiseta e caminhou solenemente para um banquinho embaixo de uma árvore.

-"Irmã, me faça um favor, deixe ele aí, até acabar esta aula", pediu o professor de Educação Física.

A irmã balançou a cabeça entre um sim e uma sensação de alívio. Depois veria o que fazer. Voltou cabisbaixa para a sua sala rezando baixinho para ele não perceber.


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