Gertrudes amanheceu com os achaques de uma mulher de 80 anos. Ora, ela tinha 80 anos. Ela estava parada olhando para o teto com a sensação de que não conseguiria levantar da cama. Passaram-se as horas e ela permanecia ali deitada. Lá pelas dez da manhã Padma veio ao seu quarto e perguntou:
- Não, eu estou morrendo... Foi a resposta curta.
Padma não se assustou com aquela resposta e foi à sala continuar com o seu artesanato. Ela estava construindo um tapete de pedrinhas formando o desenho de uma mandala.
- Você vai me deixar morrer? Gritou Gertrudes.
- Este é um direito seu...
-Como assim?
Padma veio até à beira da cama de Gertrudes.
-Todos tem o direito a uma morte tranquila. Explicou Padma.
-Mas minha querida criatura, pegue o telefone e chame a emergência.
Padma foi para a sala e procurou o aparelho telefônico. Aquilo era algo que ela não gostava muito de usar, mas num caso como este seria inevitável. Sentou-se em posição de lótus com a postura completa, os pés se cruzando sobre as coxas. Pegou o telefone e perguntou:
-Gertrudes, onde é que você colocou o número?
- Está na agenda, se não estiver na agenda procure no catálogo.
Padma vasculhou as páginas do caderninho de telefones, depois passou a procurar na lista telefônica. Nisto Gertrudes levantou-se ainda um pouco cambaleante e foi até a mesinha do telefone.
- Então eu estou morrendo e vejo que o pequeno buda está tranquilamente meditando em minha sala?
- Estava procurando o número.
- É tenso! Assim não dá para se morrer nem viver em paz.
- Mas eu estou em paz.
- Ora minha amiga, chame um táxi que nós vamos para o hospital.
- Será mesmo necessário?
- E por que não?
- Acho que você deveria tomar um café forte, tudo isto não passa de ressaca.
- E você tem alguma coisa contra eu me agarrar com um litro de vodca?
- Não, cada pessoa faz o que quer com o seu organismo.
- E hoje de manhã o meu organismo vai se agarrar com o primeiro médico cheirando a leite que aparecer perto de meu campo magnético. Disse Gertrudes com ironia.
- Você anda vendo televisão demais.
- A TV somente me inspirou, mas não quero de modo algum encontrar com um House idiota por lá.
- Mas ele é tão competente.
- Não preciso de competência e sim carne nova.
- Você planejou tudo... Disse Padma com surpresa.
- Eu sou uma genia... Admita, preciso escutar algo ou ao menos ver algum sinal.
Padma fez uma cara de assustada.
- Esta careta idiota já é um grande incentivo.
Elas pegaram o taxi e foram direto para a emergência do Hospital de Trauma.
- Padma, desça e diga que a sua amiga está morrendo de qualquer coisa.
- Não posso dizer isto.
- Não diga que estou de ressaca, não é a mesma coisa.
Padma foi em direção ao balcão atendimento enquanto Gertrudes era conduzida por um dos atendentes para a sala de emergência. Deitaram-na em uma maca e aplicaram-lhe um soro.
- Padma, socorro.
- Cheguei, já fiz a tua ficha, expliquei que você amanheceu com um pouco de enxaqueca devido a algumas doses de vodca que tomou ontem à noite.
- Isto é traição.
- Falei a verdade.
- Eu quero um médico lindo aqui e agora.
- Como isto é possível?
- É tenso! Menina pegue essa sua carinha, linda, loura e japonesa e vá buscar qualquer ente do sexo masculino desde que seja um tesão e esteja com um estetoscópio pendurado no pescoço.
- Mas estamos num hospital.
- Padma, aos oitenta eu posso me dar ao luxo de pedir alguns agrados. Vá e arranje um médico lindo ou um enfermeiro, mas que seja homem, bruto, grosseiro, mas com disposição de fazer umas apalpadelas nesta velhinha safada. Vá o meu tesão é urgente.
Padma afastou-se desconcertada sem saber como fazer para conseguir a encomenda feita por Gertrudes. Vinha andando pelo corredor quando topou de frente com um médico e ele preenchia as especificações da amiga. Ele olhou no fundo dos olhos de Padma e ficou paralisado por alguns instantes.
- Machuquei você ela perguntou?
-Não, desculpe-me, qual o teu nome?
- Padma.
-Prazer, o meu é Raul.
Padma fez uma reverência. Ela somente falou sobre a amiga que estava pedindo um médico. Ele explicou-lhe que não era a sua especialidade, mas a candura de Padma o deixou apaixonado e ele concordou em ir ver Gertrudes.
- Gertudes, este é Dr. Raul...
Gertudes teve um choque com a beleza do rapaz. Chamou Padma ao ouvido.
-Uuuul. A senhora tem bom gosto, tirando o nome dele, que mais parece marca de sabão de coco, fico com ele. E começou a gemer.
-A senhora está sentindo dores? Ele perguntou.
- Claro em todo o corpo - E confidenciou no ouvido de Padma - é o que eu sempre falo, bonito, sexo lindo, mas burro como uma loura que eu conheço.
Padma fez um sorriso para o médico e olharam-se como se o mundo existisse somente para eles dois. Gertrudes percebeu o brilho nos olhos dele e pensou que seria uma boa ideia tirar proveito das flechadas da paixão.
- Se eu estou aqui é porque estou sentindo dores. Disse Gertrudes em voz alta.
- Calma, vovó...
Padma imediatamente pôs as mãos na boca de Gertrudes prevendo uma resposta malcriada.
- Ela sente dores nos pés?
Gertrudes grunhiu algumas palavras abafadas pelas mãos de Padma.
- Nos joelhos?
Novo grunhido da amiga que se contorcia de raiva.
-Nas coxas?
Gertudes gostou do ritmo que a consulta ia tomando e acalmou-se um pouco.
- Na bexiga? Perguntou o médico.
Gertrudes fez um sinal afirmativo.
- Tire a mão da boca de sua amiga, você a está machucando. Disse o médico para Padma.
Padma retirou a sua mão da boca de Gertrudes já preparando o ouvido para o que poderia ouvir de imprecações.
- Dói na bexiga, doutor, pode apalpar que o senhor notará um inchaço. Disse Gertrudes.
-Não vou apalpar, vou encaminhá-la para a sala de raios X.
- Mas eu não quero fazer raios X, eu prefiro os exames antigos.
- Eu já vi que a senhora está sentindo muitas dores, então o melhor é um exame mais profundo...
- O senhor está com nojo de mim?
-Não.
- Por que eu tenho a idade de ser a sua tataravó, é isso?
Padma puxou o médico para o lado e conversaram amigavelmente sob o olhar atento de Gertrudes. Eles deram fizeram carinhas sorridentes enfurecendo Gertrudes.
- O que é isso? Um complô contra mim?
- Ele vai te fazer um exame rápido no abdômen.
O médico se aproximou e fez uma série de movimentos delicados no abdômen de Gertrudes. A cada gesto ela se contorcia de dor como se estivesse sendo cirurgiada no cru.
- Pronto, vou receitar um remédio para dor de cabeça e você poderá ir para casa.
- O que tem a haver a barriga com a cabeça?
- O estômago é como um segundo cérebro, adiantou-se Padma tentando explicar.
Gertrudes começou a arfar como se estivesse morrendo sufocada.
- O que foi?
- Estou tendo uma parada respiratória.
O médico ficou assustado com a encenação e correu em busca dos maqueiros para levar Gertrudes para a sala de emergência com aparelhos para o uso de oxigênio.
- Amiga, eu preciso de uma respiração boca a boca. Confidenciou Gertrudes.
- Isto que você está fazendo não é correto. Estou decepcionada com você. Veja estas outras pessoas aqui, elas precisam de atendimento, você não.
- Preciso de um homem colado na minha boca.
Todas as pessoas na sala pararam para olhar para Gertrudes. Ela percebeu a plateia e sentiu uma imensa vergonha de ser velha, pois se tivesse a idade de Padma mandaria todas aquelas pessoas xexelentas para o inferno. Levantou-se da maca e num pulo foi caminhando em direção à porta, sentiu que o mundo estava anuviando para uma escuridão e caiu.
***
O quarto estava iluminado apenas por uma fraca luz que ficava atrás da cama. Gertrudes abriu os olhos notou que estavam em um outro ambiente. Então vasculhou o local para encontrar Padma, mas não encontrou ninguém. Percebeu apenas uma musica suave de mantras indianos tocando.
-Devo ter morrido – pensou - E isto aqui deve ser antessala do tribunal celeste. Devo estar esperando o momento do julgamento final. Quando aparecer na frente do dono do mundo...
Gertrudes parou um instante com os seus pensamentos e percebeu que estava dando atenção a uma possibilidade de deixar a terra e partir para o outro mundo.
- Mas acredito, que a vida acaba no nada e, se isto aqui está acessível aos meus sentidos, eu estou viva.
Reuniu todas as suas forças e gritou:
- Estou viva!
- Sim, você está viva e ainda está com o seu corpo. Disse Padma revelando a sua presença.
- Como entrou aqui?
- Eu estava aqui.
- Todo o tempo?
- Não saí de perto de você em nenhum momento.
- Onde estou?
- Você está no Hospital Memorial.
- O que aconteceu?
- Você teve uns problemas graves que não sei explicar, foi encaminhada para a UTI e depois transferida para cá.
- UTI ?
- Sim, foi o único lugar onde não pude ficar contigo todo o tempo.
- Eu ia morrendo... Falou Gertrudes com uma certa tristeza.
- Quase, mas ainda não era a sua hora de fazer a passagem.
- Não comprei ainda este bilhete.
- Todos compramos um destes bilhetes quando nascemos.
- E o meu médico lindo? Ele me beijou? Perguntou Gertrudes com um ar maroto e mudando o assunto para outra área.
- Não, ele não te beijou.
- Mas você o beijou, eu vi os olhares dele para você.
- Não.
- Ele é tesão sem roupa? Ah, deve ser.
- Gertrudes, você me deixa encabulada....
- O bumbum dele é bonito? Vocês fizeram sexo e aí, você gozou?
- Amiga, vejo que já recuperou o mesmo ânimo de antes. Disse Padma se esquivando das perguntas.
- Você está fugindo de minha curiosidade.
- São os meus segredos.
- Mas eu hoje preciso viver através de sua vida. Eu havia bolado este plano de ir para a emergência e ganhar umas apalpadelas e quem sabe um beijo na boca até mesmo um selinho, me vejo como uma mendiga que pede a migalha de um afeto sexual qualquer, até um cheiro, um abraço, um toque, mas que seja algo que me faça mulher, eu tenho 80 anos mas ainda tenho em mim o mesmo tesão de minha adolescência. Vejo você tão bela e aguada como uma estátua de louça. Se fosse possível trocar de corpo eu fazia um financiamento pela Caixa Econômica e comprava o corpo de alguma adolescente por aí, tem tanta gente que vende o rim, poderia ter uma maluca que me vendesse logo o corpo todo, ou você poderia trocar de lugar comigo.
- A vida na terra tem as suas fases e cada qual o seu sabor. Você já teve vários corpos nesta sua trajetória por aqui.
- Não comecemo novamente este papo espiritualista...
Padma fez um gesto de assentimento, deu aquele largo sorriso que a caraterizava.
- Vou deixar você sozinha um pouco. Preciso ir ao apartamento preparar tudo para sua volta. Prender Marieta na gaiola e providenciar mais frutas e verduras.
- Você deixou aquela galinha solta no apartamento?
- Somente três dias?
- Três dias?
- Foi o tempo que você passou aqui.
Padma saiu. O apartamento do hospital ficou silencioso por um longo período.
- Morrer! Eu nunca tinha pensado nisso verdadeiramente como uma possibilidade. Murmurou Gertrudes quebrando o silêncio.