24 de mar. de 2008

A Morte do Cágado

Por Everaldo Vasconcelos


Na sala reinava silêncio absoluto. No quadro-negro um problema de matemática estava sendo escrito. Cada qual fazia o lápis riscar o caderno com uma lentidão calculada.


"Já terminaram de copiar este? Perguntava a professora.


"Nãooooo!"


"Rápido, que ainda tem mais três", replicava a mestra.


Todos eram solidários naquele exercício de impedir que houvessem mais questões para a tarefa de casa.


Quando a sirene tocou avisando a hora do recreio, todos saltaram das cadeiras, sem dar ouvidos aos reclamos e correram para fora.


Menos um. Raulzito saiu lentamente da sala.


Uma grande algazarra se estabeleceu no pátio. De todos os lugares corriam crianças. Algumas paravam em pequenos círculos para fazerem o seu lanche. Outros já se organizavam numa partida de bolinhas de gude. Raulzito tentava se aproximar, mas ninguém lhe dava qualquer atenção. Ele sabia que vinha aprontando muito com a turma.


Todos pareciam se encaixar em alguma brincadeira.


Raulzito caminhou sozinho chutando algumas pedras. Algumas resvalaram sobre a cabeça das meninas que estavam numa brincadeira de garrafão.


"Cuidado", gritaram.


"Deixe eu brincar?", ele pediu.


"Tudo bem, mas você vai ser o pega", disse Kátia.


Um grande desenho feito na areia de uma enorme garrafa, Raulzito era o pega, responsável pela guarda do mesmo; as meninas deviam atravessar as paredes do garrafão sem serem vistos por ele. Senão precisariam correr para tocar na mancha e ficarem livres da lixa, uma pancadaria de tapas como castigo. Mal a brincadeira começou e Maria desleixadamente foi pega, ela ficou indecisa ainda procurando o local que havia sido fixado para a mancha.


Todos escutaram a imensa tapa que a pobre coitada levou nas costas.


"Você está expulso de nossa brincadeira", decretou Kátia.


Raulzito saiu em direção a um pequeno pomar que havia na escola. Ele sabia que era melhor ficar distante. Ao menos por aquele dia. No muro do pomar havia uma rachadura, que estava tapada com algumas madeiras. De lá era possível observar a estrada de barro batido que passava ao lado da escola.


Ao longe se podia avistar aquela criatura estranha, com o seu casco negro, seus passos lentos e firmes. Era um cágado, que alguns conheciam pelo nome de jabuti, um réptil antiqüíssimo, parente das tartarugas marinhas. Era uma cena memorável sob o sol causticante daquela tarde de verão. Um legítimo representante da família dos quelônios, caminhando pacientemente pelas margens da rodagem.


Raulzitou observou quando o cágado principiou a sua travessia de um lado ao outro da estrada. Ao longe, vinha um caminhão em disparada. Pareceu aquela estória da corrida do coelho e da tartaruga, que a professora tinha contado na aula de português, mas neste caso, o réptil estava pebado. Atrás do fenemê subia o poeirão.


"Que bicho mais leso!"Pensou Raulzito.


O animal vinha batendo pernas tranquilamente. Não deu tempo nem de gritar, ou jogar uma pedra, que teria sido até mais eficaz. Os pneus pegaram o casco daquela criaturinha indefesa que foi arremessada para dentro do mato.


Raulzito pegou-o e conduzi-o para um dos recantos do muro externo. Do alto, no primeiro andar, onde ficava a diretoria da escola, de uma janela a irmã Neide assustou-se quando viu o menino fora do prédio. Ela compadeceu-se daquela atitude tão caridosa de auxílio a um animalzinho ferido.


O acidente havia aberto uma enorme ferida no casco. Dava para ver as entranhas. O bicho se contorcia de dor e agonia. Raulzito observou o sangue, os movimentos doloridos, mas resolveu fazer uma pequena experiência. Primeiro colocou um pouco de areia na ferida. A dor tornou-se ainda mais intensa, o que era perceptível pela perninhas que se remexiam um pouco mais rápidas. Então Raulzito pegou alguns seixos maiores e enfiou no casco. O Cágado agonizava. Então, ele passou a colocar pequenos gravetos na ferida.


A irmã Neide apavorou-se com a crueldade do menino. Largou tudo desceu apressada pela escadaria, sendo interrompida aqui e ali, ora por professoras, ora por funcionárias, ora por alunos que a adoravam.


Não havia tempo para dar atenção a ninguém.


De qualquer forma o cágado iria morrer, é verdade, com ou sem as experiências crueis de Raulzito, mas quando animal não deu mais qualquer sinal de vida, o menino sentiu algo que nunca tinha se passado em seu coração. Aquele ser vivo morrera em suas mãos e ele sentiu toda a dor do mesmo. Deu-lhe uma gastura na alma. Ele sentiu-se profundamente triste. Cobriu o defunto com folhas de mamona. Pensou em rezar o "Santo Anjo do Senhor", mas sentia-se um diabo. Saiu caminhando, voltou para o pomar e foi em direção a sua sala de aula.


Irmã Neide cruzou por Raulzito sem se dar conta imediatamente. Parou. Achou estranho o semblante da criança. Era algo de uma desolação fatal. Algo tinha ocorrido. Ela esqueceu de dar a reprimenda que já vinha na ponta da língua. Todos notaram que ele naquele dia havia sido tomado por uma tristeza de morte.



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