22 de jan. de 2022

A GORDA

  Nós vemos apenas o reflexo do mundo, e não tal qual é. Assim, a primeira luz que vem refletida de qualquer coisa fica guardada em nossa memória. A sua aparência primeira era de uma mulher gorda, gordíssima. Talvez essa minha fala possa parecer uma agressão, uma manifestação de preconceito, um ato de gordofobia. Mas o que se há de fazer? Ela era um balão, e era assim que os meninos da Rua Esperança a chamavam, era o seu segundo nome.

Ela impunha respeito com o seu corpanzil de dinossauro - desculpem-me a piada de mau gosto. Ela era tão avantajada que até o cachorro pitbull raivoso e assassino do policial aposentado que morava na casa da esquina, e que quando desfilava pelas ruas, todos se trancavam dentro de casa - não vou aqui falar dele, que era um rabugento que não merece nem mesmo as minhas lorotas deselegantes - pois até o seu monstro canino amofinava diante dela. Ela era a expressão do poder de alguma deusa misteriosa que neutralizava o mal, sendo secretamente admirada por causa disso.

A essa altura, vocês devem estar me perguntando quem era aquela criatura, que como já disse era obesa, e se chamava Mariane. Descobri o seu nome por acaso, porque também compro pão na Padaria de Genésio, e ela também foi comprar o seu pão e pediu para guardar a conta no caderninho. Vi quando Bernadete, que fica no caixa anotou o nome dela: Mariane. Assim soube de Mariane. “!Meu deus, ela tinha um nome”- pensei.

Ela percebeu que eu havia lido o seu nome, e pela primeira vez eu olhei o seu rosto. Ela tinha os olhos verdes, da cor das folhas novas do pé de figueira. Os cabelos eram de um tom castanho-claro que brilhavam quando o sol refletia neles. o seu nariz era pequeno e um pouco arrebitado, e a boca era como um arco egípcio de atirar flechas. Olhando o seu rosto, de verdade, no fundo dos olhos, eu vi aquela mulher, Mariane, e desde aquele dia ficava esperando o momento em que ela apareceria para comprar pão. Ela era a rainha do pão; comprava uma dúzia somente para si mesma, já que morava sozinha em um casarão velho que ficava no final da rua encostada com a cerca da Reserva Florestal. 

Assim a gorda, deixou de ser a gorda e se tornou Mariane, e eu gostava de olhar no fundo de seus olhos…

Certo dia, ela não foi comprar o pão de cada dia. Não achei nenhuma dificuldade em deixar passar o fato, mas quando ela sumiu por uma semana então comecei a ficar angustiado. Ninguém na rua ficou preocupado com ela, somente eu, que ficava olhando para a sua casa para ver se acontecia alguma coisa. Convenci-me de que deveria ir até lá para verificar se não estaria acontecendo alguma coisa- inspirei-me num desses seriados policiais - quem sabe não teria ocorrido alguma coisa. Antes, porem, eu comentei com as pessoas da vizinhança sobre o sumiço dela. Ninguém se importou. Tem pessoas assim que não parecem fazer falta a paisagem, mesmo que sejam extremamente gordas. 

Numa sexta-feira, dia de lua nova, esperei que caísse o silêncio da noite, e que o movimento da rua fosse desaparecendo. Antes porém dei um jeito de quebrar a lâmpada de iluminação noturna do poste que ficava em frente a casa de Mariane. Eu esperei que tocasse meia-noite no sino da igreja. Ainda tem esse detalhe de minha rua, que tem uma igreja pequenina, na qual o padre Fernando teve a idéia de colocar um relógio que bate as horas; é algo sem sentido, em um tempo no qual todas as coisas são digitais; os meninos não brincam mais na calçada e sim com os videogames; nem fazem aventuras de verdade, mas transportam-se para dentro do mundo das series ficcionais transmitidas pela internet. No entanto essa era minha rua. 

Voltemos ao relógio da igreja. Com a décima segunda badalada eu fui pelos recantos mais escuros, Vestindo uma calça com motivos de camuflagem na selva, uma camisa verde-oliva para me sentir como um general de alguma guerra fora do tempo, e calçando botas; não eram botas de verdade, mas um tênis cano longo de cor preta, e um boné azul. O fardamento de minha incursão guerreira a casa de Mariane não estava dentro dos padrões consagrados pelo imaginário popular, mas foi o que eu arranjei.

Eu fui caminhando na intenção de que estava invisível, mas percebi quando Dona Maroca, a nossa repórter geral para assuntos da vida alheia estava de prontidão em sua janela, mas acho que ela não me viu. Ela já tinha quase 80 anos e  a sua visão não era mais tão aguçada quanto antes. Fiquei imóvel esperando que ela trancasse a sua janela. Com a batida do relógio anunciando uma da manhã, finalmente, ela apagou as luzes de sua casa. Acho que ela deve ter pensado que eu  era somente uma visagem. 

Prossegui com a minha aventura.  Empurrei o portão, que estava sem ferrolho. Esgueirei-me pelo jardim empunhando a minha pequena lanterna de led que havia comprado na banca do chinês da feira que vende todas essas quinquilharias importadas. É preciso ilustrar que os muros da casa da gorda eram altos e ninguém tinha a menor curiosidade do que havia lá dentro, nem mesmo eu, mas quando me vi dentro de seu jardim assustei-me com os canteiros de flores que estavam podados, sem a presença de matos inoportunos, e havia até uma pequena fonte com um peixinho jogando água pela boca.

A casa tinha paredes com partes do reboco caído, revelando tijolos vermelhos maciços. O piso arranhado pelo movimento da mobília. A porta frontal com 3 metros de altura com o seu verniz escuro descascando tinha uma argola de bronze polido do tamanho de minha mão que deveria servir de campainha.

Imaginei como era que uma pessoa gorda teria a coragem, ou mesmo a disposição para limpar uma casa. Os serviços domésticos são muito chatos. Todos sabem disso. Mas a casa dela não tinha teias de aranha, nem areia nos recantos, nem poeira sobre a mobília, mesmo com uma semana após o seu desaparecimento da padaria. 

Passou-me pela cabeça a ideia de que ela teria mudado de padaria, talvez percebendo as olhadas profundas que havia dado em seus olhos - que assim fosse - essa era a única explicação para o estado de arrumação da casa. 

Eu então resolvi fazer uma volta de averiguação ao redor do imóvel, para assegurar-me de que estava tudo certo.  A casa ficava no meio do terreno e não havia nada fora do lugar. 

Quando ia passando pelo quintal percebi que havia uma pequena porta no muro que fazia fronteira com a reserva florestal. Era um portão camuflado com  algumas plantas trepadeiras de modo que, se não se olhasse com atenção, pensaria-se que seria somente  um gradil para a planta. Mas era um portão. 

Ainda fui até ele, mas lembrei-me de manter o foco, que era entrar na casa. A porta da cozinha estava somente encostada de modo que não tive problemas para entrar no lugar. Usei a luz débil da lanterna e fui me sorrateiramente deslizando para ver se havia alguma presença na casa. Não havia ninguém, exceto que sentia que a casa estava sendo vigiada por alguma coisa. Nisso pensei que talvez ela tivesse colocado câmeras de segurança. Mas não isso era impossível, a gorda não era uma pessoa que aparentasse ter recursos  para isso. Era somente uma gorda, muito gorda que apesar de imensa era uma nulidade existencial. 

Havia a sensação de que algo estava me observando. Eu podia deduzir devido ao estado de arrumação das coisas. A casa não era um lugar imundo com restos de comida jogados no chão, paredes sujas de gordura, ratos correndo pelos cantos, teias de aranha e baratas voadoras. Não, a casa era bonita como se fosse de uma princesa magrinha e linda.

No entendimento de muitas pessoas as princesas devem ser todas esbeltas. 


Fui em cada cômodo. Na sala havia um sofá de tamanho normal, uma TV antiga daquelas de válvula, um radio também de válvula, cortinas bordadas com motivos florais, nas paredes alguns quadros de paisagens marítimas. Um agradável cheiro de alecrim. O quarto da gorda me surpreendeu. As paredes eram rosa e havia um mobile com borboletas pendurados no teto, a janela estava coberta com uma cortina de véu muito fino que dava para ver um canteiro de flores do jardim, mas a sua cama era pequena, e tinha o tamanho adequado para uma menina de 14 anos. Resumindo, o quarto da gorda parecia ser um quarto de boneca. Pensei - “Não, aquele não deveria ser o quarto da gorda”. Nem o quarto, nem a cozinha, nem qualquer daqueles cômodos da casa pareciam pertencer àquela personagem que todos na rua tratavam com indiferença. 


A única coisa que sabíamos dela é que, segundo se contava, ela morava ali desde pequena, e quase não saía de casa. Tanto é assim que os mais velhos não lembravam dela quando criança, mas sabiam que ela estava lá. Os seus pais, também se via pouco, e saiam muito a negócios de modo que a casa ficava aos cuidados da menina, quando pode ficar sozinha em casa; antes sabia-se de uma babá igualmente obesa. Aliás os seus pais eram também avantajados em tamanho. Diziam bom dia, boa tarde e boa noite, e não conversavam sobre a sua vida. 


Sim, mas continuando o relato de minha investigação - se a gorda não estava ali, se a casa não parecia adequada para a vida de uma pessoa obesa, onde estaria aquela figura? Para onde teria ido? O que seria aquilo?  Estava absorto com os meus pensamentos quando percebi que alguma coisa se movimentava no quintal. O meu sangue gelou, arrepiei-me, o coração disparou numa taquicardia, pois não tinha como me defender de algum ataque, e nem mesmo um pedaço de pau havia levado comigo.


Ainda estava paralisado quando entrou um vulto, que percebeu a minha presença. Houve um momento de silencio. “Você tem noticia de Mariane?” - foi o que eu perguntei. Houve um silencio daqueles de filme de terror. Naquele instante eu preferia que estivesse de fato dentro de um filme da TV em que sempre aparece uma ajuda externa para salvar o herói da situação difícil. No caso, eu seria o herói, óbvio.


Então arremeti mais uma fala no estilo: “Percebi que a gorda não foi mais comprar  pão e fiquei preocupado com a conta”. Uma desculpa esfarrapada que não convenceria  ninguém; cobrar uma conta de madrugada com uma lanterninha de Led. A sociedade tem o hábito de criminalizar as pessoas que estão fora de seu padrão. O vulto não disse nada afastou-se para o escuro do quintal. Eu fiquei ali congelado com medo até do movimento do vento nas árvores. 


Esperei assim pelos primeiros raios de sol. À medida que o sol foi clareando a aparência da casa foi se revelando 

semelhante às minhas primeiras expectativas, havia sujeira, os móveis tinham uma dimensão proporcional ao tamanho da gorda; tudo fedia a restos de comida e gordura, e dava para ouvir os guinchos dos ratos correndo pelas vigas do teto. Com a manhã estabelecida saí pela porta da frente que também estava somente encostada e fui para casa com  a alma petrificada. Adormeci em minha cama como  se tivesse chegado de uma guerra  nuclear. 


Certo dia, algumas semanas depois da minha aventura na casa da gorda, eu tinha ido até a padaria. Mariane estava saindo com o seu saco de pães, olhou no fundo dos meus olhos e sorriu.




8 de jan. de 2022

A LIVRARIA DA LUA

 Hoje eu recebi a ligação de uma voz feminina me convidando para uma conversa. Disse-me que se chamava Luna e que os nossos encontros anteriores foram marcados por acontecimentos que provavelmente ficaram guardados na minha memória como se fossem sonhos ruins. Vinha vivendo a agonia de acordar de manhã e lembrar de coisas estranhas que aconteceram no dia anterior, mas que eu também tinha a certeza de que aquilo não fora real. Uma coisa é a realidade, outra é a quimera. Eu tinha a sensação de que aquelas coisas estavam em luta dentro de mim. Isso tinha a ver com a presença daquela mulher nas minhas lembranças. Propus tomarmos um café. Assim eu iria encontrar com a personagem de meus pesadelos. 

Marquei na Livraria do Café, que fica no Rua Augusto dos Anjos no centro da cidade antiga. Lá é um ponto de encontro de artistas e intelectuais, e segundo o meu entendimento, é um lugar protegido contra as emanações  negativas que andavam correndo sobre a cidade de João Pessoa. É uma sala grande subdividida por balcões de livros ,tem estantes nas paredes, parece com um mergulho em um mar de estórias. Em um dos cantos da sala há um balcão de um café com um mostruário de salgados e doces, ao fundo em outro balcão uma máquina de café café expresso. Há três mesas com quatro cadeiras cada, para os clientes. Marcamos para três da tarde. Lá era um ambiente onde poderíamos conversar livremente e protegidos.

Nada mais propicio para lidar com uma situação próxima da ficção do que uma livraria.  Não estava cedendo para a tese da alucinação, mas é que coisas que tem este tipo de realidade são difíceis de serem colocadas no dia das pessoas a não ser através dos jogos eletrônicos e dos filmes fantásticos; a gente nunca dá com a possibilidade de que isto possa existir. 

Cheguei no horário combinado. Pedi um café forte duplo.Da posição em que estava dava para ver através dos livros expostos na vitrina a movimentação das pessoas que passavam pelo Beco.

“Olá, tudo bem contigo?” - Disse Luna sentando-se. 

Ela vestia uma calça jeans elástica, de cor verde, que lhe fazia o contornos das pernas, uma camiseta preta com flores bordadas em amarelo. O cabelo cortados formando uma pequena franja sobre a testa; o volume do cabelo mas denso no alto fazia uma transição brusca na linha da orelha fazendo a forma de um arco na nuca que ficava completamente à vista revelando a tatuagem de uma carranca. As orelhas finas e um pouco pontuda no alto.Ela usava um brinco de ouro que tinha a imagem de uma árvore da vida, dessas que aparecem nas revistas de palavras cruzadas. Era um visual diferente do que estava na minha memória.

“Estou avaliando se não é um erro, mas…” - disse-me segurando a minha mão.

Ela pensava que talvez tivesse sido um erro, porque era algo que não poderia ser desfeito, transformado-o  numa lembrança distante. Ali era alguém que estava saindo do mundo do inverossímil e se encontrando em carne e osso comigo.

Mas ela estava errada sobre mim. Eu entenderia alguma coisa do que estava acontecendo. Estava preocupados com as coincidências, com a sensação de estar em dois mundos. Pedi mais um café duplo dessa vez extra-forte. 

Ela disse-me que uma conversa aberta não seria aceitável, mas que cederia algumas informações, apesar de eu não ter credencial, mas que poderia ajudar de alguma forma.

“Posso saber como?” - Perguntei.

“Você poderia ser um observador de algumas coisas estranhas que estão ocorrendo em João Pessoa”

“Um espião?”

“Algo assim”

A livraria era um lugar adequado, para um papo descontraído, um pouco imaginativo, era o disfarce perfeito. Os clientes não se assustavam com a nossa conversa, ao contrário, eram atraídos pela figura exótica de Luna. Eles olhavam-na despindo-a com os seus olhares. 

Posso dizer que ela estava muito atraente. Eu tinha comigo que a conversa era um teste, relembrando  que eu tinha estado em lugares e visto coisas que são invisíveis para a maioria dos mortais, e que até ali, colava a idéia de  uma alucinação, mas agora não, ela iria  me explicar tudo. 

Ela falava com desenvoltura gesticulando os braços como se o espaço fosse uma substancia e ela moldasse nele as palavras, chamando a atenção dos freqüentadores, alguns homens, que pensavam que ela fosse apenas mais uma Lolita esperando pelo seu romancista. Porém, eles não sabiam o que ela realmente era; as aparências enganam. Ali Luna não se parecia com a mulher eu que vira em ação. 

Vi quando um amigo se aproximou com cuidado para não criar a idéia de que estava flertando com Luna, acho queria que tudo parecesse casual.

Ali não daria para continuar a nossa conversa, fosse o que fosse,  e ainda mais com as importunações dos amigos, propus que fôssemos para outro lugar. 

“Gente, dá licença que eu estou conversando com o meu amigo” - ela protestou.

Ela falou que estava na hora de colocar essa cultura patriarcal e machista na lata do lixo, e os “cidadãos de bem” lentamente foram se recolhendo.

A nossa conversa continuou em paz.  Ela me explicou as coisas que estavam acontecendo na cidade e questionou se eu toparia conhecer um pouco mais, que eu tinha passado por algumas experiências.

“Teve um momento em que pensei que estava ficando louco, perdendo a lucidez”

“A nossa organização cuida de coisas de segurança em setores fantásticos”

“Qual o nome dela?”

“Não importa”

“Vou chama-la de…”

Luna repreendeu-me com o olhar. Depois saímos e fomos caminhando pela Praça do Ponto de Cem Réis. Ela disse-me que mandaria o endereço de nosso próximo encontro, entrou em um táxi e foi embora, e dessa vez eu sabia que não era um sonho.


CONTOS DA SEQUÊNCIA

1- ZUMBIS EM JAMPA

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2 - O PORTAL DA PRAÇA DA PEDRA

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3-A LIVRARIA DA LUA

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6 de jan. de 2022

O PORTAL DA PRAÇA DA PEDRA

 Eu estava sentado em um banco na Praça da Pedra, que é um lugar místico - uma pedra que fica no meio de uma praça. Uma pedra? - Isso, uma pedra não tão grande como um obelisco. Um obelisco anão - Muito estranho. As pessoas que passam acham inusitado aquela monólito ali.

Dizem que ela tem ligações com o outro mundo, por causa da proximidade do mais antigo cemitério da cidade. 

Quando você está em João Pessoa, você pode estar em uma Praça chamada Pavilhão do Chá, da qual parte a  Rua da República, uma ladeira íngreme que levará você para a Praça da Pedra. Faça esse caminho quando o sol estiver a poucos graus de atingir a linha do poente. Pois é lá que se passaram os fatos que vou contar. Poderia ser mais uma lenda urbana de Jampa, mas aconteceram comigo naquele dia.  

Era próximo das seis horas da tarde, de um mês de inverno e a superlua cheia estava bela  em sua chegada. As pessoas em seus caminhos de volta para as suas casas, e boêmios começando a lida da luxúria noturna, e tantas coisas mais - eu tinha ido ali para comprar uma peça para o meu automóvel, uma Brasília amarela, antiga, cujas peças somente se encontrariam em desmanches de carros antigos do Distrito Mecânico, que ainda é um lugar que agrega oficinas mecânicas e ferros-velhos. 

De volta do Distrito Mecânico passei pela frente do cemitério do Senhor da Boa Sentença, e no cansaço,  sem ter conseguido comprar a peça do automóvel, sentei-me na Praça da Pedra, o meu sapato incomodava demais. 

Eu estava absorto contemplando o fim do dia naquela hora tão especial escutando o radio de pilha do pipoqueiro que estava na calçada, tocando a Ave Maria, quando Eduardo e Luna se aproximaram da pedra. Ficaram inquietos quando me viram, mas tentaram dissimular que me conheciam. Eu lhes lembrei que os conhecia de um acidente no qual estivemos todos envolvidos e no qual havia sucedido coisas estranhas. 

 “Prefiro viver no presente”- disse Luna

“O que estão fazendo aqui?” - perguntei. 

Luna respondeu que estavam esperando um amigo.

Perguntei se era alguém do bairro, pois conhecia algumas pessoas, mas eles disseram que não, que era algo sem importância.

Eles estavam muito ansiosos e se afastaram dando a impressão de que iam embora, mas eu percebi quando se esconderam próximo ao Sebo do Coronel, uma antiga livraria de livros usados, que ficava na Rua da República.

Eu decidi me afastar, mas mantendo a vigilância  sobre os dois. Vi quando eles se aproximaram da pedra, fizeram um meio giro ao redor da mesma e desapareceram.

Então eu me aproximei, e fiz o mesmo giro e para minha surpresa estava na mesma praça, só que não existiam pessoas nas ruas, o horário era o mesmo, mas a cor do mundo era de um sombrio azul profundo.

Procurei pelos dois, e os vi descendo a calçada em direção as ruínas da antiga Fabrica Matarazzo. Eles percebem a minha presença.

“O que está acontecendo? - perguntei.

“Acho que o que aconteceu contigo naquele acidente de ônibus na Avenida Miguel Couto te habilitou a passar pelos portais de Jampa” - Explicou Eduardo.

“Eu sabia que não tinha sido alucinação”

“Essa é uma situação muito incomum” - completou Luna.

Eles explicaram um pouco o que estava acontecendo.

Vai parecer estranho o que vou contar para vocês, mas a tarefa deles era pegar uma pedra especial, que estava sendo usada pelas criaturas da cidade dos monstros para abrir os portais de Jampa e “zumbizar” as pessoas.

“Zumbizar?”

“Transformar em zumbis” - explicou Luna.

“Não ria, é sério!” - completou Eduardo - “e o  plano deles é controlar os portais de Jampa para invadir a cidade e atacar as pessoas, retirando-lhes as almas, transformando-as em  armas capazes de qualquer perversidade. A nossa missão é capturar essa objeto”

Achei aquela estória muito estranha. Disse que estava disposto a ajudar, mas eles lembraram que era uma tarefa difícil, pois o lugar era guardado por criaturas assombrosas…

“Sim, e o que mais?” -  Eu debochei.

Eles me pediram que ficasse na retaguarda, na calçada, enquanto que eles entrariam no prédio.

A rua estava vazia com uma luminosidade cinza e um cheiro de podre que vinha do Rio Sanhauá que ficava logo abaixo. Eu sabia que o rio estava poluído, mas o cheiro transcendia a realidade, o vento era frio com lufadas cortantes.

O portão tinha o desenho de uma letra U invertida na vertical, que terminava numa espiral. 

Pensei que poderia ficar ao menos pelo lado de dentro, e como não havia nada à vista, também achei que Eduardo e Luna haviam me enganado com aquelas estórias fantásticas. 

Olhei para para todos os lados e não os vi, então já que estava ali aproveitei para caminhar um pouco pelo espaço, estava escuro, mas a luz da lua cheia deixava o lugar explorável.

Caminhei entre as sucatas. Era um corredor curto, sem perigos, havia uma  chance mínima de acontecerem complicações. Essa era minha aposta.

Pensei comigo que não iria abusar da sorte se desse somente uma espiada no lugar.

Então fui surpreendido por um golpe de espada aos meus pés. Escutei o tilintar do aço no chão. Fiquei paralisado. Vi um animal semelhante semelhante a uma naja com três cabeças, todas cortadas, e cerca de 2 metros de comprimento.

Apareceu Luna e fez um gesto pedindo que eu fizesse silencio. Eu fiz um gesto com os ombros dizendo que não estava entendendo o que estava acontecendo. 

“É um filhote” - Ela sussurrou. 

Eduardo apareceu também portando uma espada e explicou que a mãe daquele réptil estranho deveria estar por ali, e que agora eu teria que ir com eles porque a missão não poderia ser cancelada.

Entramos em um salão com teto triangular com 50 metros de altura, onde deveria ter sido o galpão das máquinas pesadas. Era de metal, já com muita ferrugem, aparentava ser sólida apesar dos seu século de abandono. Eu pensei que talvez aquele lugar pudesse ser um centro cultural. 

Eles me pediram para andar agachado e em silencio. Dentro do galpão a luz era pouca, mas percebia-se que havia um mezanino na parte alta, onde haviam criaturas se movendo, uma luz amarela bruxuleante produzida por candeeiros a querosene. Eduardo indicou uma parede do mezanino para ser escalado por Luna; ela esgueirou-se naquela direção e virou uma sombra.

Eduardo mandou-me segui-lo, mas afundei o meu pé em um buraco e fiquei preso. Percebi que ele deu um suspiro profundo.  Voltou e ajudou-me a sair. Nisso quando íamos subindo por uma escada em espiral  percebi que uma caranguejeira cabeluda pulou nas costas dele. Eu peguei-a com cuidado, logo mais sabia como fazer isso, pois já tinha criado algumas como animal de estimação. Ela não era venenosa, mas notei que Eduardo ficou assustado; achei que ele não amava os aracnídeos.  Já  estávamos próximos ao lugar, entramos numa passarela suspensa que nos levava a uma porta.

No salão não havia mais ninguém. Luna já estava lá e disse que o lugar estava limpo. As paredes estavam pintadas de cinza com uma textura que dava a aparência de algo escorrendo do teto, o cheiro era cabelo queimado.

Eles falaram que não estava ali, mas que era um lugar próximo. Eu fiquei admirando a paisagem lá do alto, o pátio da antiga fábrica. Era intrigante terem construído um salão grande suspenso sobre uma grande estrutura que parecia ter sido um dos fornos da antiga fábrica. Como tudo se parecia com um sonho, eu não tinha nem um pouco de medo.

Eles vasculharam o salão em busca de algo. Eu não sabia o que era. Sentei-me em um banco e olhando para a parede atrás do púlpito tive a impressão de ver um pequeno brilho, que a luz da lua fez refletir. Mostrei a eles, que louvaram o meu achado. Era um olho mágico que fora acomodado na parede. Assim, descobrimos poderíamos estar sendo observados, e nesta hora senti um arrepio. Também percebi que o armário possuía rodinhas quase imperceptíveis também reveladas pela lua. O armário era uma porta camuflada.

A outra sala era escura, sem nenhuma brecha para ver o céu, se parecia com uma sala de apoio de um templo; em suas paredes estavam desenhados olhos grandes; nas quinas superiores, nos quatro cantos, estátuas de pequenas criaturas com olhos negros sem narizes e uma boca minúscula. No centro do teto havia o desenho de um mapa da cidade de João Pessoa onde haviam marcados alguns lugares com um X amarelo, notei que entre estes lugares estavam o fim do viaduto da Miguel Couto, a Praça da Pedra e a Fabrica Matarazzo.

“O que são estes X marcados no mapa da cidade?”

“São os portais; tem vários” - Disse Eduardo.

Não havia uma porta de saída dali. Parecia uma armadilha mortal.

Luna percebeu uma pequena alteração no assoalho e com perícia conseguiu destravar o mecanismo e abrir uma passagem.  Uma luz bruxuleante de cor amarela-alaranjada escapou pelas frestas, dava a impressão de um fogo, algo queimando.

Eles perceberam a minha surpresa, então me disseram que a partir dali as regras do mundo seriam outras, parecidas com aquelas que vivenciara no viaduto, onde o portal fora aberto, e eles conseguiram fecha-lo por muita sorte.

Agora eles estavam conscientemente passando para aquele outro lugar, que funcionava, mais ou menos assim: Jampa era um nível mágico da cidade de João Pessoa, mas ali iríamos entrar no nível sombrio da cidade de Jampa, que era o lugar de onde vinham os monstros. Disseram-me que teria que ir junto, pois o portal da Praça da Pedra já se fechara e agora eles teriam que ir por outra saída, que eles sabiam exatamente onde ficava.

“Isto não é  um filme, não é um sonho. E você será útil como isca.” - Disse-me Luna.

Desejei que fosse um sonho.

Quando passamos pela porta, demos com um alpendre suspenso no espaço no qual havia uma passagem em duplo arco verde a 15 metros de altura, ladeada por figuras de monstros montados com peças  de sucata e entre eles cortinas feitas de pequenos ossos humanos.

Chegamos a um corredor longo com curvas e ao final uma porta com fechadura embaixo rente ao chão. Luna e Eduardo debruçaram para examinar o que parecia ser uma fechadura moderna com chave comum. Iniciamos uma busca pela chave. Não havia nada. Olharam para mim esperando que a sorte de principiante valesse a pena naquela instante.

“A porta pode estar aberta” - foi a minha sugestão idiota.

Era uma sugestão idiota mesmo, se depois de tanta fantasmagoria a porta estivesse aberta. Eduardo zombou de mim. Luna me olhou com pena. 

Eu realmente não estava respeitando a dimensão dos acontecimentos. Então para completar a minha imbecilidade resolvi empurrar a porta, nem usei de muita força, ela cedeu rangendo, estava aberta para a surpresa geral.

Eduardo e Luna disseram que poderia ser uma armadilha, logo mais uma eventualidade assim não se encaixaria neste tipo de acontecimento, pois até o momento não havia aparecido nenhum tipo de obstáculo e tudo caminhava bem, apesar do lugar ser sombrio e estranho.

Nunca imaginei que aquela fabrica abandonada contivesse esses mistérios. 

“Bem, estou novamente tendo delírios e amanhã quando acordar tudo isto será apenas a recordação de um pesadelo.” - Pensei comigo.

“Não é um sonho.” - Disse-me Luna adivinhando os meus pensamentos.

Empurramos a porta e entramos naquele lugar amplo, do tamanho de um Ginásio de Esportes. No meio estava um pequeno altar e em cima dele um objeto com um brilho muito peculiar.

Luna me disse que se tratava de um material chamado pedra da lua. Era isto que deveríamos pegar e fugir. 

Ao ver as criaturas que habitavam aquele lugar, senti o horror dentro de minha alma, com a evocação de todos os seres diabólicos que já habitaram os meus pesadelos.  A minha opção era fugir sem olhar para trás. Fui me esquivando devagarinho em direção a porta de entrada. Fui de “fininho” como se diz. Luna e Eduardo tomaram o rumo deles, nem olhei. 

Tentei empurrar a porta, mas estava travada. Disse comigo mesmo um palavrão, que como foi algo interior, não preciso descrever aqui para não escandalizar algum leitor. Então forcei a porta, ela cedeu fazendo um rangido. 

Ninguém me percebeu, abri a porta e me arrastei para dentro da outra sala. Ajoelhei-me encolhendo o corpo depois que ouvi um som estridente. Enquanto isso, o pau comia na caverna.

“Meu deus , por que fui me meter nisso?” -  Disse arrependido de ter seguido aqueles dois.

Naquele momento, tudo aquilo que acontecera no viaduto, que eu estava atribuindo a um delírio, ou a um pesadelo, estava acontecendo novamente. 

De repente, entraram pela porta Eduardo e Luna. Ficaram surpresos em me ver bem e disseram para irmos rápido porque eles tiveram que lutar com algumas coisas lá, das quais esqueci os nomes, e provavelmente elas estariam vindo atrás de nós. 

Fizemos o caminho de volta , mas quando chegamos na passarela aqueles monstrinhos de sucata estavam vivos. Eduardo disse-me que precisamos passar ligeiro porque a aproximação das coisas lá de baixo iam mudando e dando vida àqueles bestas de metal. Corremos. Já perto da saída Luna sugeriu que fôssemos pela corda que ela usou para fazer a escalada.

“Eu descer? Jamais”

Eles desceram. Quando vi aquelas coisa vindo em minha direção, agarrei-me à corda e desci ralando a minha mão, o coração a mil.

Uma vez no chão sabia o caminho a correr. Uma coisa era lutar com algo visível, outra era enfrentar coisas invisíveis, ou fora do padrão do meu paradigma civilizado.

Cheguei ao portão de entrada primeiro, fui abrindo no solavanco, corri até a Praça da Pedra, mas não sabia como fazer para passar de volta para a cidade normal. Eduardo e Luna chegaram, não se incomodaram comigo, pediram que os seguisse. Fui com eles até o coreto da Praça do Pavilhão do Chá. Luna retirou um objeto de sua sacola e esperou que ele acendesse,  então passamos de volta para a cidade normal. 

“Um portal é aberto com a pedra da lua de um tamanho especial uma vez a cada lua cheia, mas essa pedra mesmo em seu tamanho menor tal como é vendida nas lojas de artigos orientais, se for colocado no local exato, o que é muito raro, quase impossível, pode estabelecer sintonia com um portal.” -  Disse-me Luna.

Eduardo disse-me que depois eu saberia mais, que eles iriam me procurar. 

A cidade estava normal com o seu transito descendo a Rua General Osório. Havia passado somente alguns minutos após as seis horas da tarde. Um conselho: se for a Praça da Pedra, nesse horário não leve uma pedra da lua.

Por favor não postem fotos do lugar para não incentivar os aventureiros.


CONTOS DA SEQUÊNCIA

1- ZUMBIS EM JAMPA

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2 - O PORTAL DA PRAÇA DA PEDRA

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3-A LIVRARIA DA LUA

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