23 de set. de 2021

O JOGO DE BURACO

A neblina fria da manhã anunciava a chegada do inverno. Pela porta da casa grande dava para ver a relva verde das plantações que ficavam logo a frente. Ao lado de um pé de seriguela ficava a porteira, por onde o vaqueiro Valdevino conduzia o gado para outros pastos que ficavam um pouco além de um monte que se erguia logo adiante.

Os pássaros da manhã se apresentavam no terreiro para disputar com outros as migalhas possíveis, enquanto as galinhas cacarejavam catando o milho que era jogado por Dona Elizabete, uma senhora de estatura baixa, cabelos negros e curtos, olhos exuberantes e delicados. Ela se movia pelo terreiro dando comida às aves, mas também cuidando de outras pequenas coisas que se desarrumavam durante a noite. O galo dava o seu canto triunfal da manhã.

Pois foi assim, naquela manhã quando ela estava cuidando das coisas do começo do dia que o seu marido chegou em casa, tonto, como algumas vezes se sucedia quando ia jogar o tradicional jogo de cartas chamado "buraco" na casa dos amigos. Ela se preocupava com essas jogatinas que envolviam certas apostas, mas ele garantia que não se preocupasse que eram quantias pequenas somente para manter o calor do jogo. Ele chegou e sequer tomou um banho, dirigiu-se para o quarto e caiu na cama. Ela conhecia essa rotina. Ele ficaria adormecido curando a ressaca até o final do dia. Quando o sol começasse a se por, ele se levantaria e perguntaria pelo café, que é claro, já estaria servido, embora já fosse a hora da ceia vespertina. Todos na casa, o caseiro e a dona Lourdes, que era uma pessoa da família, como se diz das pessoas que trabalham nas casas desde pequena e vão se incorporando a paisagem familiar; todos conheciam o ritual desses dias de embriagues. Não fazia mal. Dona Elizabete aceitava que todo homem deveria ter o seu espaço de liberdade.

Mas naquele dia em especial, tão logo o vaqueiro Valdevino, atravessou com o gado em direção ao morro dos jacus, que é uma ave que possui um grasnido rouco. Valdevino viu que na estrada lá longe vinha uma mulher, a pé, com uma sombrinha chinesa, de cor vermelha muito vistosa, e era uma mulher muito bonita. Valdevino esfregou os olhos, parecia uma artista, daquelas que aparecem na televisão que tinha em casa.

- O que seria aquela aparição? .Ele se perguntou.

Ele esperou. A mulher disse que se chamava Penélope, e foi perguntando onde era a casa de Reinaldo. O vaqueiro disse que a casa de Doutor Reinaldo era ali, mas que ele tinha chegado muito tarde de um trabalho que tinha ido fazer e não poderia atender. Ela disse que não se importava e que falaria com a esposa. Valdevino apontou apara Dona Elizabete que estava no terreiro. O vaqueiro se despediu com uma mesura tal a autoridade com que ela falou com ele; parecia mais uma princesa vestida em um curto e apertado vestido de seda preta. Valdevino continuou o seu caminho com o gado, vez ou outra dando umas olhadas para trás para contemplar aquela formusura na terra.

De lá do terreiro Dona Elizabete viu a mulher se aproximar. Deu bom dia, trocaram as saudações convenientes numa hora dessas. Dona Elizabete perguntou se ela queria um café. Penélope estranhou o convite, esperava que talvez acontecesse algo mais rude; foram para a mesa da cozinha que ainda estava posta com o cardápio próprio de uma fazenda: leite fresco, queijo de coalho e de manteiga, coalhada, bolo de milho, cuscus, ovos fritos, era um banquete.

De fato, era um café da manhã tradicional para o doutor Reinaldo, mas agora eles estava dormindo, então a mulher visitante disse que viera cobrar dele a conta que não pagara na noite anterior, pois ficara com ela e não quis honrar com o pagamento, que ela precisava do dinheiro. Dona Elizabete disse que não se preocupasse que ela pagaria. Dita a quantia, ela buscou a carteira do marido e deu tudo o que havia lá, provavelmente mais que o dobro da dividida.

Depois Dona Elizabete mudou de assunto e pediu que Penélope falasse de sua vida; entabularam uma conversa como se fossem duas amigas que se prestavam solidadriedade. Passado um tempo, Elizabete pediu que Penélope ficasse para o almoço, mas ela recusou.

-Fica para outra oportunidade - disse - e que não poderia retribuir a mesma gentileza em sua residência, pois não era uma casa adequada a uma mulher casada. Levantou-se e foi embora. Dona Lourdes que tudo assistia, somente declarou que a vida de uma mulher não era fácil.

Findo o dia, levantou-se Reinaldo senhor de si e do mundo. Estranhou que a sua carteira estivesse sobre a mesa, ao que a mulher disse que havia pago em dobro a dívida de jogo que ele deixara na noite anterior. Ele olhou estupefacto, e ela disse ,

- Sim, ela esteve aqui para cobrar a dívida.- e arrematou - jogando buraco, não é seu Reinaldo?


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12 de abr. de 2021

A LINGUA TU

 O que vou lhes contar aqui é algo estranho, que foi o modo como conheci um pequeno grupo de artistas encantados que moravam no Jardim da fonte do Theatro Santa Roza, em João Pessoa.  A trupe TU,  saltimbancos das estrelas. Os TU são criaturas pequeninas, semelhantes a gnomos, que falavam, um idioma muito engraçado, que é o que vou relatar aqui: o idioma TU.

Essa é uma língua muito divertida porque tem somente vocábulos com uma sílaba, e tudo, são algumas consoantes e cinco vogais. Tudo o que se pretende dizer depende da intenção, do contato com a pessoa que fala e da performance. 

Encontrei com eles muitas vezes, no final da tarde, próximo à fonte. Por alguma mágica da imaginação, eu fui levado para o seu mundo. Vou lhes explicando por partes, pois nesta viagem pude aprender com eles,  na prática, o idioma TU. 

PRONOMES

A primeira coisa foram os pronomes.

-MA, disse-me um deles apontando para si mesmo.

E depois

-ME, apontando para mim.

Depois apontou para o restante do grupo e fez um gesto com a mão incluindo-nos todos e disse:

-MI.

E apontando para as pessoas que circulavam na Praça Pedro Américo, que fica defronte ao teatro disse

- MU.

Assim aprendi que todos os pronomes, pessoais, possessivos, demonstrativos são formados apenas pela letra  M e as cinco vogais. Por exemplo: MA; ME; MI; MO e MU, significam todos os pronomes possíveis, e as vogais o grau de proximidade com de fala ou com quem é ouvido dependendo da intenção e da situação. Assim, MA pode significar eu, meu. As vogais funcionam assim, na sequência AEIOU: o "A" é sempre muito próximo do foco da palavra e o "U" é mais distante. Assim, se eu falo de mim, MA se refere a mim mesmo e MU a uma pessoa ou algo distante. A regra de uso depende do bom senso e do contato visual. Se queremos dizer nós, então falamos ME, ou MI, mas se queremos dizer eles, dizemos MU, que está muito longe de quem é o foco da fala.

No uso das outras classes de palavras é importante ressaltar que dependendo do contexto e da performance as cinco vogais fazem o papel dos pronomes.


SUBSTANTIVOS CONCRETOS

 A outra classe de palavras são os substantivos concretos formados pela consoante T: TA; TE; TI; TO; e TU, que se referem a todos os substantivos concretos. a mesma regra das vogais, para coisas distantes e próximas.

Por exemplo:

A fonte do Theatro onde estávamos é TA.

A estátua de Augusto dos Anjos que fica na Praça é TE.

A estrela Hamal da constelação de Aries é TU.


SUBSTANTIVOS ABSTRATOS

As palavras abstratas são formadas com a consoante S e as vogais. As palavras dependem da performance para significarem se são alegria ou tristeza.

Assim para dizer que é alegria em mim a palavra é SA com a performance de alegria.

Então entendi o porque deles se chamam SU, com a performance de que são artistas de teatro, dança e circo, quer dizer algo que está muito abrangente.


ADJETIVOS

 Os adjetivos que são simbolizados pelas palavras com D, DA, DE DI, DO, DU, valendo a mesma regra das vogais, sendo que o diminutivo tem a performance de algo diminuindo e o superlativo a performance de algo crescendo.

Então se quero dizer que algo distante de mim é muito grande vou dizer DU com a performance de algo grande, e se é pequena fazemos a performance de algo pequeno.


CONJUNÇÕES

Tem as palavras para  emendar as coisas na performance que funcionam como conjunções e que usam a letra K e as cinco vogais.

Se estou dizendo de duas coisas eu falo TA KA TA, com a performance adequada.


PREPOSIÇÕES

Todas as preposições  tem a letra N como formadora , ainda obedecendo a regra das vogais e da performance.


INTERJEIÇÕES

Temos também as interjeições que tem a letra X, vogais e performance. Se é boa ou ruim, de alegria ou de dor, depende da performance. 


VERBOS 

Os verbos são expressos pelas letras P, R e F para os três tempos verbais, passado presente e futuro, respectivamente.

Todos os verbos no tempo passado são formados pela letra P,  vogais e performance. 

Todos os verbos no tempo presente são formados pela letra R,  vogais e performance. 

Todos os verbos no tempo futuro são formados pela letra F,  vogais e performance. 


A frase Vá ao teatro traduzida para a língua TU fica:

RE NE TE, e a respectiva performance.

A frase Vou ao teatro traduzida para a língua TU fica:

RA NA TA, e a respectiva performance.

Como regra geral as vogais de tudo numa frase concordam com o verbo, podendo ter exceções conforme a necessidade da performance.


FORMAÇÃO DE FRASES

O idioma TU é uma língua que depende da presença , não sendo possível traduzi-la sem acesso à performance. 

O povo saltimbanco TU fala junto com o corpo em um processo de performance. Eu estive com eles por algumas  vezes, e fui vendo as possibilidades de aprendizagem de sua língua.  Fora a parte escrita das letras e sonoridades, eles não me ensinaram completamente a codificação corporal, dizendo-me que cada grupo deve conhecer-se a si mesmo para desenvolver esta outra parte. 

Por fim recebi a autorização para contar para vocês sobre a língua deles e a permissão para que quem quiser possa usá-la. Eu pude assistir muitas coisas enquanto estive com eles, que sabem que o mais importante na comunicação é algo que ocorre numa relação de cumplicidade entre os interlocutores, que é preciso estar em comunhão para que tudo funcione. Perguntei se não era possível saber do seu passado. Eles me disseram que essas coisas precisavam ser ensinadas através da performance, que os livros eram escritos no corpo de cada pessoa; assim o conhecimento era algo que respeitava a vida e servia a todos. No mundo deles vida e arte se confundiam. 

Vale a pena conhecer os TU. Eles me disseram que se você praticar a sua língua, eles entram em contato automático com o grupo, que não é necessário, a princípio, que todos saibam, mas que um sabendo da língua, pode usá-la  para comunicar-se através da performance estabelecendo níveis profundos de troca espiritual. 

O PERIGO DOS LIVROS ANTIGOS

Sobre ser grato. Não é uma coisa fácil de se praticar. Todos acham que isso é uma coisa automática, que todas as pessoas são gratas por natureza. Parafraseando o que escreveu Descartes no início de seu Discurso do Método, todos já se acham com a dose certa de gratidão, que não é preciso nem mais se preocuparem com isso.

Não quero aqui comentar sobre a gratidão nos outros, pois cada um deve cuidar de si mesmo, e não é prudente, nem mesmo possível adentrar os mais profundos abismos de cada um para perscrutar o seu nível de gratidão. Eu digo de abismos profundos, porque sinto que a gratidão habita os lugares mais profundos de nosso ser, não é um sentimento de superfície, tal como na comunicação diária, quando dizemos, grato por isso ou aquilo. 

A experiência da gratidão. Isso foi o que me aconteceu numa manhã, cedinho, quando fui ao mercado fazer as compras da semana. Morava sozinho em uma casa grande, antes é bom que explique esse sozinho, pois morava em companhia de uma amiga. 

Mas como assim? Essa pessoa com quem o senhor vivia não era uma companhia? Podem objetar algumas pessoas com asco do meu comportamento desprezível.

Antes de explicar o que aconteceu no mercado é preciso que esclareça quem era essa minha amiga, mas antes é preciso que lhes fale de um livro que encontrei em um sebo de livros antigos que fica na Praça da Bandeira na cidade de Campina Grande. Era um livro de capa de couro, já escurecido pelo tempo, mas bem conservado. Gosto de livros velhos. Ao pega-los sinto-me reconectado com outras pessoas que viveram em outras eras, é como uma porta para outros mundos, e esse era o título, "A porta do outro mundo", escrito em português, havia sido publicado no século XIX, na cidade de Lisboa. Na folha de rosto do referido volume havia uma inscrição feita a caneta bico de pena com uma tinta antiga: "Cuidado com este livro. Devolva-o imediatamente à sua estante". Convenhamos que não se diz isso a um espírito curioso como o meu; imediatamente coloquei-o debaixo de minha atenção, mas para não chamar a atenção do livreiro, coloquei-o junto a outros volumes para despistar o meu interesse. Essa é uma das estratégias para se comprar livros em sebos antigos que não tem os seus preços tabelados em um computador. Para minha surpresa o sebista deu-me o tal livro como brinde e ficou muito feliz com o fato de eu ter me interessado por ele.

Nesse livro, que ainda está em minha estante, mas devidamente plastificado para evitar que algum incauto o abra e leia alguma de suas linhas. Hoje diante das tecnologias maravilhosas dos ebooks as pessoas desdenham dos livros feitos à moda de Gutemberg. Pode parecer ridículo isso que vou escrever,mas esse Gutemberg a que me refiro não é algum influenciador digital de algumas da redes socias, e sim o Gutemberg que inventou a imprensa no século XV. Os livros de papel tem algum poder neles, algo mais sutil que a tecnologia não consegue imitar. 

Nesse livro estava descrito os modos como um ocultista português descobriu os meios de visitar os universos paralelos. Já na introdução o autor, cujo nome é melhor que não saibam, advertia o leitor para interromper a leitura. Ele pedia que desistissem, que não lessem as páginas seguintes, que a simples leitura poderia ser uma experiência maravilhosamente terrível. Porém, pensei que se fosse algo assim tão assustador, por que é que ele escreveu o livro e publicou-o? Essa resposta eu somente vim obter depois, muito depois.

A leitura daquele livro levou-me  a mundos inimagináveis; lugares onde a tecnologia digital é algo primitivo, pois existem estados de energia muito mais sutis do que, o  zero e o um, da lógica binária. Eu que pensava que o ocultismo era uma fantasia da literatura, descobri que havia muitas outras coisas por trás daqueles símbolos e rituais que mais tinham a ver com matemática e física avançados. Fiz muitas viagens e estava muito feliz com as minhas descobertas, mas como nem tudo são flores, cometi um grave erro, deixei o livro em minha sala sobre a estante da sala, ao lado da televisão. Uma amiga, que sempre vinha me visitar, era avessa a livros de papel, aliás tinha verdadeiro asco por qualquer texto que tivesse mais do que 140 caracteres. Ela inadvertidamente abriu o livro, por coincidência, no capítulo que tinha como título "A primeira porta" e não voltou mais. Os livros antigos são perigosamente desafiadores.

 Depois de 3 anos, daquele encontro inicial dela com o velho alfarrábio, ela viera morar definitivamente comigo, pois a família depois de tentar todas as psicoterapias e internações, desistiu dela, e como ela sempre falava de mim como uma última lembrança de "lucidez" antes de sua "loucura", coube a mim cuidar dela. Não falava; ela queria ler; já tinha lido todos os livros de minha biblioteca e para o meu espanto leu três vezes até o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, verbete por verbete cuidadosamente. Isso era espantoso para alguém que conhecia um único livro, que era o livro sagrado de sua religião, mas que lia na superfície das letras, misturadas à névoa criada pelos dirigentes de seu culto. 

Na leitura daquele livro antigo ela tivera acesso aos universos paralelos, viajado no tempo e conhecido novas pessoas. E um dia, ela me presenteou com um folheto de cordel que havia escrito: "A porta da felicidade". Pense em um susto; o meu foi maior quando vi aquilo em minhas mãos. Depois eu ajudei-a a publica-lo, mas ela foi além; montou uma barraca de poesia na Feira, onde expande essas portas para outras pessoas. 

 Naquele dia na feira, ao aproximar-me de sua barraca de poesia, vi que havia um novo título pendurado em um cordel. Ela olhou-me com aqueles olhos grandes e negros, pegou um exemplar, beijou-o e me deu. O título do livreto era "A porta da Gratidão". Aquele velho livro havia despertado nela o grande poder da leitura, e agora ela lia livros, pessoas, a natureza, a sociedade, o universo. Então, depois de todo esse tempo ela falou. Disse "Gratíssima". Eu é que sou grato pelo seu olhar que enxerga outros mundos possíveis.