12 de abr. de 2021

O PERIGO DOS LIVROS ANTIGOS

Sobre ser grato. Não é uma coisa fácil de se praticar. Todos acham que isso é uma coisa automática, que todas as pessoas são gratas por natureza. Parafraseando o que escreveu Descartes no início de seu Discurso do Método, todos já se acham com a dose certa de gratidão, que não é preciso nem mais se preocuparem com isso.

Não quero aqui comentar sobre a gratidão nos outros, pois cada um deve cuidar de si mesmo, e não é prudente, nem mesmo possível adentrar os mais profundos abismos de cada um para perscrutar o seu nível de gratidão. Eu digo de abismos profundos, porque sinto que a gratidão habita os lugares mais profundos de nosso ser, não é um sentimento de superfície, tal como na comunicação diária, quando dizemos, grato por isso ou aquilo. 

A experiência da gratidão. Isso foi o que me aconteceu numa manhã, cedinho, quando fui ao mercado fazer as compras da semana. Morava sozinho em uma casa grande, antes é bom que explique esse sozinho, pois morava em companhia de uma amiga. 

Mas como assim? Essa pessoa com quem o senhor vivia não era uma companhia? Podem objetar algumas pessoas com asco do meu comportamento desprezível.

Antes de explicar o que aconteceu no mercado é preciso que esclareça quem era essa minha amiga, mas antes é preciso que lhes fale de um livro que encontrei em um sebo de livros antigos que fica na Praça da Bandeira na cidade de Campina Grande. Era um livro de capa de couro, já escurecido pelo tempo, mas bem conservado. Gosto de livros velhos. Ao pega-los sinto-me reconectado com outras pessoas que viveram em outras eras, é como uma porta para outros mundos, e esse era o título, "A porta do outro mundo", escrito em português, havia sido publicado no século XIX, na cidade de Lisboa. Na folha de rosto do referido volume havia uma inscrição feita a caneta bico de pena com uma tinta antiga: "Cuidado com este livro. Devolva-o imediatamente à sua estante". Convenhamos que não se diz isso a um espírito curioso como o meu; imediatamente coloquei-o debaixo de minha atenção, mas para não chamar a atenção do livreiro, coloquei-o junto a outros volumes para despistar o meu interesse. Essa é uma das estratégias para se comprar livros em sebos antigos que não tem os seus preços tabelados em um computador. Para minha surpresa o sebista deu-me o tal livro como brinde e ficou muito feliz com o fato de eu ter me interessado por ele.

Nesse livro, que ainda está em minha estante, mas devidamente plastificado para evitar que algum incauto o abra e leia alguma de suas linhas. Hoje diante das tecnologias maravilhosas dos ebooks as pessoas desdenham dos livros feitos à moda de Gutemberg. Pode parecer ridículo isso que vou escrever,mas esse Gutemberg a que me refiro não é algum influenciador digital de algumas da redes socias, e sim o Gutemberg que inventou a imprensa no século XV. Os livros de papel tem algum poder neles, algo mais sutil que a tecnologia não consegue imitar. 

Nesse livro estava descrito os modos como um ocultista português descobriu os meios de visitar os universos paralelos. Já na introdução o autor, cujo nome é melhor que não saibam, advertia o leitor para interromper a leitura. Ele pedia que desistissem, que não lessem as páginas seguintes, que a simples leitura poderia ser uma experiência maravilhosamente terrível. Porém, pensei que se fosse algo assim tão assustador, por que é que ele escreveu o livro e publicou-o? Essa resposta eu somente vim obter depois, muito depois.

A leitura daquele livro levou-me  a mundos inimagináveis; lugares onde a tecnologia digital é algo primitivo, pois existem estados de energia muito mais sutis do que, o  zero e o um, da lógica binária. Eu que pensava que o ocultismo era uma fantasia da literatura, descobri que havia muitas outras coisas por trás daqueles símbolos e rituais que mais tinham a ver com matemática e física avançados. Fiz muitas viagens e estava muito feliz com as minhas descobertas, mas como nem tudo são flores, cometi um grave erro, deixei o livro em minha sala sobre a estante da sala, ao lado da televisão. Uma amiga, que sempre vinha me visitar, era avessa a livros de papel, aliás tinha verdadeiro asco por qualquer texto que tivesse mais do que 140 caracteres. Ela inadvertidamente abriu o livro, por coincidência, no capítulo que tinha como título "A primeira porta" e não voltou mais. Os livros antigos são perigosamente desafiadores.

 Depois de 3 anos, daquele encontro inicial dela com o velho alfarrábio, ela viera morar definitivamente comigo, pois a família depois de tentar todas as psicoterapias e internações, desistiu dela, e como ela sempre falava de mim como uma última lembrança de "lucidez" antes de sua "loucura", coube a mim cuidar dela. Não falava; ela queria ler; já tinha lido todos os livros de minha biblioteca e para o meu espanto leu três vezes até o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, verbete por verbete cuidadosamente. Isso era espantoso para alguém que conhecia um único livro, que era o livro sagrado de sua religião, mas que lia na superfície das letras, misturadas à névoa criada pelos dirigentes de seu culto. 

Na leitura daquele livro antigo ela tivera acesso aos universos paralelos, viajado no tempo e conhecido novas pessoas. E um dia, ela me presenteou com um folheto de cordel que havia escrito: "A porta da felicidade". Pense em um susto; o meu foi maior quando vi aquilo em minhas mãos. Depois eu ajudei-a a publica-lo, mas ela foi além; montou uma barraca de poesia na Feira, onde expande essas portas para outras pessoas. 

 Naquele dia na feira, ao aproximar-me de sua barraca de poesia, vi que havia um novo título pendurado em um cordel. Ela olhou-me com aqueles olhos grandes e negros, pegou um exemplar, beijou-o e me deu. O título do livreto era "A porta da Gratidão". Aquele velho livro havia despertado nela o grande poder da leitura, e agora ela lia livros, pessoas, a natureza, a sociedade, o universo. Então, depois de todo esse tempo ela falou. Disse "Gratíssima". Eu é que sou grato pelo seu olhar que enxerga outros mundos possíveis.