26 de mai. de 2020

A GARRAFADA CALMANTE



Naquele dia Kátia amanheceu, como se diz popularmente, com vontade de atirar pedra na lua, e ainda era somente o terceiro dia forçado da quarentena para se evitar o contágio com o vírus mortal.

Ela olhou para o desenho completo de sua casa, pois tinha feito um mapa de possibilidades que poderiam ser utilizadas como uma rotina de lugares: no primeiro dia ela começaria pela sala, faria algumas coisas com jeito de sala; depois iria até o jardim olharia para as suas flores; depois a cozinha; por fim o quintal. Ela  criou um nome para cada um desses dias, um novo calendário, como se o tempo estivesse sendo inventado naquele instante. Feito o plano, bastava executa-lo.

No entanto, quando acordou-se no primeiro dia, como tudo se parecia com o domingo, preferiu ficar na cama mais um pouco. Só muito depois levanto-se e tomou o  café da manhã, e seguiu-se um dia de séries da tv. Quando se deu por si, estava com fome e o sol estava se pondo. O planejamento do primeiro dia havia furado. Ela foi dormir na madrugada do dia seguinte, e conseqüentemente o segundo dia não deu certo em nada. O plano dos dias desapareceu. O calendário  que a colocaria em um outro tempo desfez. Ela se sentiu  perdida dentro de um domingo que se repetia a cada amanhecer.

Aqui é preciso esclarecer que a nossa personagem é uma criatura que tinha o hábito de controlar tudo. Assim, achava que com planejamento, a quarentena iria ser um passeio em um parque temático. Como tudo dava errado, descobriu que sozinha  tinha que manter a disciplina consigo mesma, pois a sua disciplina precisava de outros que lhe obedecessem as ordens; sozinha estava diante do caos.

Sem a faxineira a casa foi se enchendo de lixo;  a arrumação das coisas foram ficando fora da simetria que tanto adorava. Nisso, resolveu que precisava aumentar o consumo de seus comprimidos especiais, mas todos já ouviram falar desses remédios que muitas pessoas tomam para controlar a ansiedade.

A tragédia é que, quando amanheceu naquele dia, verificou na caixinha de remédios que não havia mais nada. Pensou em ir comprar algo na farmácia, mas escutando na TV as noticias alarmantes. Com a sua hipocondria latejando, resolveu que iria ficar em casa, deitou-se, mas apenas se revirava na cama.

Pensou em fazer alguma coisas para  controlar a ansiedade, mas precisava de algo para tomar. Foi aí que teve a idéia de assaltar o jardim da vizinha, a cuja horta já tinha sido apresentada.  Ela sabia das ervas medicinais, algumas delas extremamente calmantes e outras que cujos efeitos desconhecia desconhecia. Ela descartou a possibilidade de pedir, para evitar qualquer contato social capaz de fazer a transmissão do vírus. A solução era fazer uma doação secreta, ou melhor um furto, silencioso, que evitasse qualquer proximidade.

Deixou que anoitecesse. Ficou atenta até que a casa da vizinha silenciasse de vez. Lá pelas horas quietas da madrugada esgueirou-se pelo muro, que não era alto. Ela vestiu-se de forma especial: uma calça preta ; camiseta preta e um capuz improvisado com um saco de presente de perfume, que era também negro. Assim estava pronta para a tarefa com a sua roupa de ninja. Ela encostou uma cadeira na parede,e dando um impulso montou no muro, mas quando ia saltar enganchou-se em um prego que ficou agarrado na sua calça. Ela jogou o corpo para o quintal alheio mas ganhou um rasgão na calça que deixou as sua calcinhas à mostra.

Ela incomodou-se com a perda de integridade de sua fantasia, mas agora era tarde. O mais importante era pegar as folhas  aproveitando a escuridão. Foi pegando um pouquinho de folhas de cada planta dos canteiros juntando tudo em um único saco. Para voltar aproveitou-se de umas tábuas que estavam recostadas em um canto.

Quando chegou em casa, pegou as folhas e colocou-as todas em uma panela. Sei que isto parece um absurdo, mas o seu grau de ansiedade era tal, que o mais importante era o chá. Fez uma panela cheia, ou melhor, um caldeirão. Ficou um liquido escuro e cheiroso, de um aroma relaxante e hipnotizante. Não esperou esfriar, tomou um copo, deixou derramar um pouco no chão formando uma poça. Foi para a cama e reclamou que não estava sentindo nenhum efeito.Apagou. 

No dia seguinte estava andando em câmera lenta. Durante a noite os gatos da vizinha e o seu cão haviam bebido do liquido que havia sido derramado. Os gatos estava miando com uma certa lentidão, era um miauuuuuuu tranquilo. O seu cãozinho estava latindo em câmera lenta com um auuuuuu entre pausas longas.  O sol estava lindo. Ela via o beija flor beijar o seu nariz, a sua mão parecia de borracha, então ela pensou que ainda estivesse sonhando, quando o seu celular tocou e uma amiga perguntou: “amiga, você tem rivotril?”, E ela disse, “tenho uma garrafada”, mas a amiga não entendeu nada.Deus sabe que tipo de ervas havia no jardim da vizinha.

11 de abr. de 2020

ZUMBIS EM JAMPA

Era noite, uma daquelas noites frias de Jampa. Você que não é de Jampa deve estar se perguntando onde fica este lugar. Bem, fica aqui na cidade de João Pessoa; é um mundo paralelo, tão colado ao mapa original que até alguns pontos turísticos da cidade ostentam um letreiro de madeira com os dizeres “Eu amo Jampa”. Há os que dizem que é uma alusão a Sampa, canção de Caetano Veloso em homenagem a São Paulo; outros defendem que é uma homenagem aos jambeiros do Bairro de Jaguaribe; uns poucos dizem que é por causa de Tampa, cidade da Flórida na América do Norte onde sonham morar.Uns últimos galhofeiros acham que é por causa da rima.

Voltemos a Jampa, para uma noite na qual o clima estava indeciso, se chovia ou não, e as estrelas no céus jogavam aquele charme estranho entre as nuvens. Um vento frio e intenso sibilava pela janela do ônibus. Eu estava recostado ao vidro curtindo a beleza da cidade, que é tão agradável; passamos pela lagoa do Parque Solon de Lucena, que após as reformas, que a deixaram ainda mais bonita, tornou-se uma jóia que vai sendo redescoberta pela população.

O ônibus fez a curva para descer a avenida do viaduto da Miguel Couto, sempre uma experiência estranha, vezes ou outra me sentia como partindo para coisas fora da realidade; quando entrava pelo buraco daquele viaduto, via passar pelas janela as pinturas de Chico Ferreira, enquanto o veículo enfiava-se no chão e o casario ia ficando na superfície. Era uma experiência muito estranha, como se afundasse em um portal.

Altas horas e naquele horário o ônibus estava quase vazio, uma sensação de solidão e sempre aquele desejo de chegar logo ao outro lado; entramos na parte mais escura do túnel que passa por baixo de um Centro Comercial conhecido como “terceirão”. Eu ficava imaginando o que estaria acontecendo lá em cima enquanto uma vida passava por baixo. O motorista conduzia o ônibus desembestado como sempre, até parecia que estávamos num brinquedo de parque de diversão. O coletivo saiu da escuridão e avistei as costas do prédio do Theatro Santa Roza; do lado direito a silhueta da cidade antiga.

O motorista freou bruscamente nos jogando a todos como em um liquificador, para um lado, e para o outro, até batermos na parede de um edifício que ficava em frente onde tinha escrita a pichação: “kiss my ass”. 

O meu reflexo estava distraído; fui tomado de surpresa e jogado para a frente com violência. Sofri uma escoriação no braço que estava colado a janela. Tive pouca sorte.

Já um outro passageiro; vou chama-lo de Eduardo; era um homem forte, estatura alta, cerca de um metro e oitenta, aparentava 40 anos; parecia que estava atento aos modos do motorista antecipando-se e reagindo ao acidente, de modo que não sofreu nada. 

Já uma moça, que chamarei de Luna, aparentemente frágil,cerca de 21 anos, pele muito branca, cabelos negros longos, seios grandes em um decote sensual que revelava uma tatuagem entre eles, lábios pequenos e bem desenhados pintados com um batom de intenso vermelho. Dá para perceber que quando entrei no ônibus a figura dela chamou-me a atenção. Ela estava sentada mais atrás e eu preferi ir para os assentos da frente próximos ao motorista. No momento do desastre ela foi jogada para a frente indo parar próximo ao parabrisa frontal. Ela machucou-se muito, mas não tinha nenhuma fratura; um corte na testa molhava o seu rosto de sangue.

Todos os passageiros estavam em choque.

O motorista havia desmaiado.

No ar apenas um zumbido, semelhante àquele que escutamos quando batemos com a cabeça em algo. O que vou contar a partir de agora é algo que aconteceu em Jampa; provavelmente isso jamais ocorreria em João Pessoa. Não é seguro para os objetivos turísticos da cidade que coisas assim aconteçam.

Este foram os fatos.

Luna mesmo machucada percebeu que um zumbi subia no ônibus. Ela pegou uma pistola, que trazia no bolso da jaqueta jeans e atirou, mas falhou.

O zumbi dirigiu-se para mim, pois o motorista estava apagado; não lhe deu atenção. A criatura morta-viva, que poderia ter saído de um filme de Zé do Caixão, agarrou-se a mim tentando morder-me. Eu dei-lhe alguns chutes afastando-o um pouco.

Eduardo, que estava mais atrás, jogou uma maleta artesanal de madeira, dessas que se vende na feira da cidade de Campina Grande. É um objeto duro. Ele mirou na cabeça, mas errou o alvo, então eu bati no zumbi com a barra da marcha de câmbio deixando-o um pouco atordoado.

Luna atirou e novamente errou. Eduardo recuperou a maleta e recuou para o fim do ônibus próximo a janela  de emergência. O zumbi continuou se aproximando.

Eu vi próximo a Luna uma daquelas estrelas com lâminas usadas nos filmes de lutas marciais chamados Shuriken. Peguei-o e atirei no zumbi que ficou um pouco mais lento com aquela coisa gravada na testa.

Eduardo pediu a arma a Luna. O monstro continuava vindo. Eduardo com grande habilidade segurou a arma e já foi acertando o bicho do mal, que recuou saindo do ônibus abalado. Luna pediu a arma de volta e atirou terminando de matar a coisa.

Respirei aliviado, mas quando saí do ônibus vi que havia mais três zumbis se aproximando.

Luna fez dois disparos e matou o mais próximo. Os outros dois continuaram se aproximando. Então Eduardo ajudou Luna a sair do veículo. Luna me passou uma arma elétrica; eu disparei-a, mas somente fez cócegas no cachorro da mulesta. Vou explicar isso, “cachorro da mulesta” é uma expressão nordestina, multi-uso, que pode ser aplicada a pessoas e situações desagradáveis. Eu pensei comigo mesmo; “estou ferrado”. Aquela coisa me agarrou, e eu me sacudia tentando me lembrar das artes marciais cinematográficas. Luna atirou acertando o ombro do Zumbi. Fiquei gelado; ela podia ter me acertado. Mas aproveitei o impacto do tiro e me desvencilhei. Gritei para Eduardo me socorrer. Ele então pegou a barra da marcha de câmbio que estava caída por ali e esmagou o zumbi. Estávamos tão atônitos que esquecemos da moça. Escutamos os gritos dela tentando nos avisar do terceiro zumbi. Ela atirou matando a coisa. 

Então Eduardo começou a falar com Luna sobre a invasão de criaturas das sombras. E eu não entendia nada daquele papo. 

Nisto, um outro zumbi veio da cerração. “Devem existir muito mais” disse Eduardo . Luna atirou, e errando o alvo o zumbi aproximou-se de modo que ela colocou a pistola dentro da boca dele e disparou até que a cabeça do ser diabólico estourasse; o corpo  caiu como uma estaca quebrada.

Escutei quando Luna disse que era esperado um ataque em Jampa, enquanto isso chegaram rápido dois furgões  que levaram os corpos dos zumbis. 

Somente algum tempo depois é que se aproximaram os curiosos, a polícia e os carros de socorro. Não houve mais testemunhas.  O fato é que eu nunca mais me arrisquei a andar por lá naquele horário. E se aquilo for mesmo um portal? Se alguém quiser se arriscar que vá por sua própria conta. Em Jampa acontecem coisas estranhas...



25 de mar. de 2020

A GEMA AZUL

Eu estou compartilhando isso aqui porque esta estória me deixou inquieto com o destino de algumas pessoas. Tem muitos que acreditam nas estrelas, outras em cartas e outras em algum sortilégio.

Eu tinha ido comer um cachorro-quente na Mundial Lanches, que fica no bairro de Jaguaribe; e enquanto esperava não pude deixar de escutar a conversa de duas pessoas que estavam à minha frente. Lá, nesta lanchonete, o balcão de atendimento é uma curva em formato de “U” que deixa os clientes muito próximos, quase íntimos; também me refiro a pessoas de forma indistinta para não comprometer a privacidade de ninguém.

Estou escrevendo porque ainda estou com o meu cérebro remoendo o que escutei; e um modo de curar estas lembranças persistentes é desabafar de alguma forma; foi isso o que me disse uma psicóloga a que fui consultar.

Somente um último esclarecimento antes de contar o que ouvi. Aqui na Paraíba, nesta cidade de João Pessoa, chamamos de cachorro-quente completo uma iguaria feita de pão, salsicha carne moída, verduras picadas, azeitona, ovo de codorna, batata palha, queijo ralado, maionese, molho de tomate ketchup e mostarda amarela; o simples não tem a salsicha. Eu sei que esta é uma informação completamente inútil, mas não custa nada.

Vamos ao que escutei. Tratava-se de uma pessoa que contava a estória que teria ocorrido com alguém que ele conhecia. Vou usar o nome inspirado no livro Assassinos Renascença. Contava-se a estória de Ezio, um fora da lei. Deixemos que vocês mesmos escutem aos fatos como foram narrados.

***

-Imagine você que eu estava em casa quando Ezio chegou esbaforido e me pediu para entrar. É claro que eu fiquei muito assustado, pois sempre que ele vem desta maneira com certeza a polícia ou outros estão perseguindo-o. Ele não veio pela porta, mas pela janela lateral de minha sala que dá para o telhado da vizinha.

- E ele não tem juízo não?

- Algumas pessoas tem os dois neurônios desafinados.

-É o caso dele.

 - Pois é, ele saltou em minha sala e foi falando rápido:”Você sabe que eu tenho problemas com a lei”.

 Eu disse: Eu sei que você é um cara errado, que se envolve em várias coisas que lhe trazem muitos infortúnios. Então ele me disse que tinha caído numa armadilha do destino.

Ele disse: “Cara, eu fiz uma sacanagem dupla com o meu pessoal”. E como foi isso? Perguntei.

“Foi assim”,ele explicou: “Eu estava com remorsos por ter passado a perna nos irmãos.”

Eu não me contive e disse que ele era incorrigível cometendo uma transgressão com o seu próprio bando, quebrando as regras e atraindo para si uma punição mortal.

Ele amenizou e disse que tinha feito algo para reparar os danos.Pediu um prazo para consertar o erro.

E neste tempo arranjou um emprego de garçom. O bar é um lugar ideal para escutar segredos inconfessáveis. Nisto, entre cervejas e tira-gostos, sempre atento a embriagues dos clientes ele conheceu uma pessoa que falava de certas pedras preciosas, uma coleção valiosa de uma certa gema azul.

***

Nisto chegaram os cachorros-quentes deles. Eles esqueceram a conversa e abocanharam a comida com uma selvageria natural. Eu até acho que deveria se comer cachorros quentes assim, pois tem gente que come com garfo e faca e com uma etiqueta que não pertence a iguaria. Penso que isto é mania de pessoas de simularem que estão em um restaurante de gente endinheirada, que adora comer aparência. Não deixa de ser engraçado ver estas criaturas comendo com tanta cerimônia para não se misturarem com os outros seres humanos. Mas isto foi somente uma pausa, logo mais o modo de comer um cachorro-quente revela muito sobre o caráter de uma personagem. Mas e a gema azul? Agucei os meus ouvidos para decifrar o que falavam em meio a mastigação.

***
- Ele disse que o cliente já bêbado falou que tinha réplicas de todas as jóias, que ficavam guardadas em um cofre na sala de jantar, disponível para os ladrões, caso alguém conseguisse entrar em sua casa que era cercada de toda a parafernália de segurança, cerca elétrica, alarme, câmeras e um cachorro assassino solto no terreno. Mas as jóias verdadeiras estavam guardadas em um outro cofre que ficava debaixo da máquina de lavar na área de serviço.

- Ele fez o roubo?

- Sim, planejou cuidadosamente, roubou as pedras e repassou para o seu bando como forma de compensar os erros cometidos no passado.

-Então tudo terminou bem no caso do roubo.

- Não, porque o homem trocou as pedras e ele levou as falsas. Agora a polícia quer encontra-lo porque foi identificado nas câmeras de vigilância e o seu bando se deu mal tentando vender as pedras falsas. A manchete do jornal dizia que as gemas azuis verdadeiras haviam sido roubadas.

- Eu vi isso na televisão, disse o outro.

***

Fiquei sem saber o final da estória; já tinha comido bastante; estava empanturrado e não conseguia mais traduzir a fala que vinha misturada com a mastigação. Tinha ido ao Caixa para pagar a minha conta quando escutei  que o narrador pedia quatro cachorros-quentes completos para viagem. Saí rápido sem olhar para trás.