27 de fev. de 2011

PEDREZ, ROSA E O PATO

Era uma vez uma menina chamada Pedrez, não uma galinha, mas uma menininha de cabelos negros e olhos pretos como o ébano.

Eita! Já ouvi esta parte em outra estória. Não importa. Era uma garotinha que tinha um pato chamado Crioulo que falava “inglês”. Sim, ele falava “inglês” a bela e encantadora língua dos filmes americanos com letreiros em português. O “inglês” era aquele idioma dos filmes que passavam no DVD que vinham acompanhados de um monte de letrinhas que ela ainda não sabia decifrar. Perguntavam-lhe como sabia que a ave falava tal idioma e ela dizia que sabia, pois se parecia muito com a linguagem dos filmes da TV. Então pediam para que o pato fizesse uma demonstração, mas para tristeza geral Crioulo era muito tímido.

Crioulo era um pato adulto, gordinho e branquinho, com os pés tão amarelos que pareciam que ele estava vestido de sol. O bico era também muito amarelinho de modo que a menina acreditava que ele também falava a língua dos habitantes do astro-rei.

Mas, o que venho contar aqui foi o que aconteceu quando Crioulo entrou num condomínio de luxo, desses que agora estão construindo em toda a cidade. Para Pedrez estes lugares eram belos, pois pareciam aquelas cidades de filmes cercadas por uma muralha, mas sem cavaleiros nem princesas. Foi-se o tempo das fadas,  ela sempre escutava de sua mãe que era e ainda é uma incorrigível pessimista. Dizia a mãe que mais vale acreditar no pior em um mundo onde não existem mais fortalezas nas palavras .

Crioulo invadiu um desses condomínios e foi parar na mesa de cristal folheada com ouro de uma das casas. Sentou-se bem no meio e ficou com aquele grasnar próprio dos patos a falar um “inglês” tão puro que somente Pedrez poderia decifrar.

O incrível ocorreu depois  quando os empregados da casa se deram conta de que havia um jarro estranho e falante sobre a mesa da sala de jantar.  Pensaram se tratar de um pato mecatrônico trazido de New York, pois já tinham visto um na televisão. Era parecido com um pato desses que aparecem em embalagem de aves congeladas, mas pensaram que não poderia ser um pato de verdade, pois naquela casa era algo que geralmente existia nos filmes ou nos supermercados. Pensavam que jamais um pato poderia ter entrado naquela casa. Um cachorro, um gato, um peixinho, sim. Um pato, impossível.

Nesta casa, abrindo um parêntese explicativo, morava uma família comum para os padrões do condomínio, um pai, uma mãe e uma garotinha tão tímida que os médicos tinham diagnosticado ela como sendo autista.

Quando a garotinha autista viu Crioulo, foi amor à primeira vista. Ela aproximou-se dele;  Crioulo olhou-a bem no fundo dos olhos para radiografar a alma e sentiu que eram almas Gêmeas de antigas e passadas carreiras nos quintais de alguma infância perdida na roda das vidas passadas. Dizem os monges do Tibete que as almas vivem rodando pelos mundos como numa grande roda gigante que vai do nascimento à morte e da morte para o nascimento, até um sem fim, quando a alma cansada de rodar resolver mudar de brinquedo.

 A menina se chamava Rosa, e por isto estava sempre vestida de cor de rosa,  roupas, sapatos, lacinhos, escova de dente, até o perfume era cor de rosa. Ela era tão calada porque quizesse também falar de outras cores.

A primeira palavra de Crioulo foi,

- “ Como você é uma menina colorida, porque está tão escondida dentro deste  roupinha cor de rosa?”

Ela respondeu a esta pergunta e mais outras coisas. Quando a empregada passou pela sala e viu a menina falante, ligou para os pais e disse que havia descido do céu um anjo da guarda e que estava conversando com a criança. Informou que o anjo por capricho do céu tinha baixado na forma de um pato, um pato gordo que poderia render um bom cozido, mas que por se tratar de um ser celestial isto não iria ficar muito bem. Os pais assustados com a informação ligaram imediatamente para a segurança do condomínio que prontamente chegou ao local armada com pistolas elétrica e o escambau de super tecnologias para defesa da cidadela.
Esta parte da estória contém algo inusitado, pois o pato que não é adepto de atitudes violentas, aplicando os princípios da legitima defesa começou a correr e a dar pequenos vôos pela casa derrubando cristais e pratarias. Foi um alvoroço tão grande que parou todo o condomínio, as pessoas se trancaram em suas casas ligaram as cercas elétricas, os raios laser, ativaram os escudos magnéticos, pois tudo levava a crer que era um assalto em níveis apocalípticos.

Era somente um pato tentando salvar a vida, uma garotinha autista correndo e gritando para ajudar o amigo e uma empregada ajoelhada rezando todas as orações que conhecia, as católicas, as evangélicas e os pontos de umbanda, pois segundo temia este negocio de perseguir anjos era muito perigoso.

Pedrez que havia seguido o seu amigo  tentou entrar no condomínio, mas o porteiro alegou que era proibida a entrada de meninas estranhas. Então a menina aproveitou um pequeno descuido do guarda e como era magrinha, franzina e sapeca, saltou por um canto e percebeu logo de entrada, na primeira olhada que Crioulo haveria de estar naquela casa rodeada de gente fazendo uma imensa balbúrdia.

 Então foi para o lugar e viu ao aproximar-se o pandemônio aéreo com a perseguição ao pato. Crioulo quando viu a menina voou para a rua e saiu uma multidão de perseguidores atrás dele. Uma procissão de gente doida atrás de um pato que ora alçava vôo e noutros instantes corria pelo chão dando aqueles grasnados que Pedrez podia traduzir como sendo,

- “Oh, meu deus me acuda deste povo amalucado.”

 As coisas ficaram perigosas quando um general reformado saiu para a calçada carregando uma bazuca que ele havia usado em alguma guerra, que não poderia ter sido a do Paraguai, nem a II Grande Guerra, talvez alguma batalha particular.

Como todos sabem a bazuca é uma arma muito perigosa que pode destruir centenas de patos com um único tiro.

Quando o general assomou à rua com a sua arma letal e ficou apontando para o pato e atrás do pato estava a multidão de perseguidores, o que vimos foi o pato e a multidão em desvairada correria no sentido oposto. 

O general apertou o gatilho e o projétil zuniu no ar indo atingir uma escultura estranha que a prefeitura municipal tinha construído numa pracinha que ficava na frente do condomínio. As balas desta coisa são muito mais vitaminadas de horror do que qualquer outra, se bem que o horror independe de tamanho e até mesmo uma baladeira pode promover a destruição. Com a explosão da estátua o povo se dispersou em todas as direções.

O general ainda deu uns dois tiros em direção a estátua. Foram duas explosões dignas dos efeitos especiais do cinema, muito fogo, muita fumaça. A escultura de ferro estava toda retorcida.

Esqueceram-se da menina. Quando já tinha conseguido tomar o brinquedo do general, depois de apaziguada todas as animosidades,  deu-se por falta da menina Rosa, e aí veio a polícia civil, militar, a guarda nacional, pois como sabemos estes condomínios pagam uma taxa de segurança especial que lhes dá direito a mais coisas que o povo comum.

O fato é que a menina sumiu. Até que alguém se lembrou que viu duas meninas seguindo um pato em direção a uma das ruas do bairro próximo. Foi um alarme de seqüestro e novamente todo o contingente de segurança foi acionado  com o acréscimo de um helicóptero preparado para o enfretamento da bandidagem perigosa.
 Não foi difícil para o piloto do aeronave identificar as meninas, que estavam num quintal de uma casa conversando e brincando de bonecas.

 Por terra , o grande batalhão se aproximou das meninas e o pai de Rosa foi logo gritando:

- “A minha filha é autista, que foi que você fez com ela?”

- “Nós estamos brincando de boneca.” Explicou Pedrez.

- “Não pode bradou o pai, a minha filha  é autista.” Explicou o pai, mas aí ele se deu conta do absurdo e parou. Ficou olhando as duas meninas falando de coisas de meninas e toda aquela turma super armada da segurança anti-seqüestro ficou com cara de babaca.

 Um especialista em segurança social aproximou-se e disse:

 - “A menina foi prejudicada, pois se era autista não podia brincar de bonecas.”

A turma da confusão se dispersou e ficaram somente os pais de Rosa sentados no alpendre daquela casa olhando a filha brincar no quintal. Não aceitaram  cafezinho, nem água, somente olhavam absortos para algo que nunca tinham visto desde que a filha nascera. Como era possível que de repente, por causa de um pato e de uma menina, ela desabrochasse assim para a vida. À hora da refeição Rosa veio até os pais e deu-lhes um beijo e foi sentar-se à mesa com a sua amiguinha e comeu de tudo o que havia até verduras.

 Uma coisa maravilhosa, ela comeu alface.

Os pais não sabiam decifrar o mistério que poderia haver nestas singularidades, pois as duas meninas pareciam se conhecerem a muito tempo tal a intimidade que demonstravam uma com a outra. Ao entardecer Rosa veio para o colo dos pais que a conchegaram nos braços e retornaram para o Condomínio. Quando chegaram em casa puseram a menina para dormir e voltaram para a sala, ficaram conversando, mudos, apenas com os olhares fixos um no outro, como se tentassem ir além dos limites que as palavras nos impõe. Assim, ficaram toda a noite. 


Na manhã seguinte procuraram uma casa destas que tem quintal, vizinhos normais e principalmente que fosse próxima a Pedrez e ao pato Crioulo.

25 de fev. de 2011

MALASSOMBRO DE PANO



Chovia e fazia frio. Todos se sentaram ao redor das pernas da avó, noite de estórias de fantasma, noite de trovões e relâmpagos assustadores. A luz elétrica havia sumido como se fugisse das terríveis dores da natureza. Apenas uma vela iluminava o pequeno grupo num recanto da sala. Todos estavam com medo e nestas horas o melhor é brincar com o pavor contando estórias de mistérios.

E ao som de um trovão começou a avó:

- “Uma vez, quando eu era pequena, gostava de fazer as minhas próprias bonecas.  Morava no sítio e os meus pais não tinham dinheiro para comprar essas bonecas de luxo de hoje em dia”.

 A avó descreveu o processo de  construção de suas bonecas:  pegava um retalho que havia sobrado de outras costuras de sua mãe; fazia um molde de cartão em formato de gente com três tamanhos, um maior para os adultos, um médio para as moças e rapazes e um menor para as crianças; cortava os tecidos nos formatos; depois os costurava e os enchia com restos de pano e palha; fazia as roupas que identificassem quem era homem ou mulher e acrescentava os retoques finais adicionando os cabelos, barba, bigode, unhas pintadas de acordo com cada boneco ou boneca; finalmente dava um nome a cada um deles. Neste artesanato criava vários núcleos familiares, cada qual com a sua própria personalidade.

A vida no reino das bonecas tinha certa parecença com o mundo com o seu ciclo de vida e morte.

Aproveitando uma rajada de vento a avó continuou a estória:

- “Vez por outra morria um filho, então eu ia até a beira do rio e com a água fazia uma mistura de barro, moldava pequenas urnas funerárias para os pequeninos defuntos e depois promovia o enterro dos anjinhos com velório e o cântico de incelenças.”

- “Que são incelenças, Vó?”  Perguntaram as crianças.

- “São as cantigas para despachar os mortos para o além.”

- “Cante uma, Vó.”

A avó recusou explicando que não é de bom augúrio cantar estas cantigas sem um motivo, porque do jeito que manda as almas para lá, por outro lado também pode atrair. Mas as crianças insistiram tanto e tanto que a avó concordou em fazer uma demonstração.

 Disse a Avó em tom solene:

- “Com o morto estendido na sala dentro do caixão ou em cima de uma mesa, vestindo a sua mortalha...”

- “Que é mortalha?” Interrompeu Raulzito.

- “É uma roupa que se veste no cadáver”. Explicou a velha senhora e continuou.

- “Então, em volta do morto as carpideiras começavam a cantar.”

- “Carpideira?”, Estranhou a menina Kátia.

- “Carpideiras eram mulheres que vinham chorar o morto e cantar as incelenças que eram assim:”

“É uma incelença da virgem santa vitória”
“Amanhã muito cedinho este anjinho vai embora.”
“Esse cujo vai embora contrito do coração”
“Adeus meu povo, adeus meus irmãos “

A avó continuou a explicação:

 - “Então eu ia para a beira do rio, cavava uma cova e enterrava os anjinhos”

 Neste instante Kátia saltou de seu lugar e disse:

- “Eu enterrei a minha Barbie que estava sem as pernas , mas não fiz uma cova nem cantei nada.”

 A Avó respondeu:

- “Então ela foi mal enterrada”

 Então a avó baixou o tom da voz e continuou a estória dizendo que uma vez quando ia passando pela beiro do rio ouviu aquela voz chamando:

-“Kátiaaaaaaaaaa...”

A menina Kátia agarrou-se à perna da avó pois tinham o mesmo nome.

- “Kátiaaaaaaaaa...”. Repetiu a avó imitando a voz misteriosa.

Uma voz fininha que se perdia pelos monturos, mas a avó fazia que não estava entendendo e os enterros continuaram.

A sua mãe lhe havia prevenido que não fizesse enterro de boneco grande, mas como a morte sempre ronda as casas de bonecas, foi fatal a morte de alguns deles e todo o ritual foi cumprido à risca, inclusive com as incelenças cantadas dozes vezes como manda o costume.

-“Então outra vez, depois de muitos enterros, quando eu passava pela beiro do rio, ouvi um assovio.” Continuou a avó.

Neste instante, as crianças e a avó sentiram o vento da chuva entrar pela sala fazendo um barulho estranho. Um clarão anunciou um trovão gigantesco, que fez tremer as paredes.

Todos ficaram imóveis, mas a avó quebrou o pavor inicial e continuou:

-“Então, outro dia quando eu ia passando novamente pela beira do rio, eu escutei a voz de uma mulher dizendo:

-“ Menina, volte aqui e me desenterre”.

A  avó continuou aumentando ainda mais o tom de mistério:

-“Foi uma voz audível como se uma pessoa tivesse falado, uma voz que quando tocou o meu ouvido provocou um arrepio em toda a pele de meu corpo. Corri  para contar para a minha mãe  que me disse que havia avisado para não cantar as incelenças completas e nem enterrar bonecos adultos. No outro dia fui até a beira do rio e comecei a desenterrar os anjinhos e alguns adultos, mas não lembrava onde estavam a cova de todos.Havia marcado elas com uma cruzinha feita de pauzinhos amarrados com linha e o tempo e outros passante deviam ter passado por cima e desmarcado os lugares. Então, toda a vez que ia se aproximando do rio, de longe, já via que alguma coisa de misteriosa iria acontecer, mas nem sempre era possível evitar aquele caminho e sempre escutava uma voz chamando. Até que um dia acompanhada de minha mãe perguntei:

-“ Mãe, a senhora  ouviu? E minha mãe deu-me um carão”  

-“Deixe de fazer pantim. Isto é invenção de sua cabeça.”

A avó arrematou a estória:

- “ E assim fiquei por muitos anos escutando aquela voz que vinha reclamar de alguma coisa e em noites de chuva, como hoje, aquelas vozes ficavam gemendo e dizendo que estavam com frio.”

A criançada estava congelada de medo e qualquer silvo do vento já era identificado com uma voz ou uma gargalhada de uma boneca enterrada.

 A menina kátia disse:

-“Eu pelo menos enterrei a boneca que já tinha se acabado, pior foi Raulzito que enterrou todo os bonecos de seu exercito de plástico vivos, só por maldade”.

- Enterrou os soldados vivos? A avó perguntou.

- “Eles estavam querendo fazer uma vigem ao centro da terra”. Raulzito argumentou.

- “Agora todos eles vem assombrar você”. disse Kátia.

A Avó interrompeu.

-“Paremos com estas estórias, que   é hora de todos irem para a cama.”

 Mas nesta noite, tiveram que encontrar uma forma de por as crianças para dormir agarrados a perna da avó.
E assim fizeram um ninho em suas pernas e não havia força que os tirasse de lá.

A avó não conseguia dormir com o incomodo da situação. Ficou então lembrando das coisas de sua infância e rindo da inocência dos pequenos netos. Um clarão tomou o quarto e o trovão rasgou a natureza como uma grande gargalhada e ela pensou ouvir uma voz chamando:

-“Venha me tirar daqui que eu estou com frio”.

A avó voltando à sua meninice agarrou-se com os netos, cobriu-se toda e adormeceu.

10 de fev. de 2011

CAPÍTULO 2 – COMBATE FILOSÓFICO

- Siga a voz leve que sopra sobre a tua cabeça. Disse Padma com ares de guru.

 Gertrudes ficou acabrunhada com a proposta procurando uma maneira de desmontar a colega. As duas mulheres continuaram andando silenciosamente pela calçada.

-  E se lá na frente tiver uma tribo de canibais? Perguntou Gertrudes.

 - Vá em frente, mesmo que os guerreiros malvados da tribo inimiga estejam lá te esperando. Respondeu Padma.

- Vai só, que eu não vou ser engolida como refeição.

Mas neste dia Gertrudes determinou-se a não se sair vencida neste embate meio filosófico e procurou um aliado. Viu que se aproximava um padre e atacou de supetão.

- Padre, a gente deve sempre ir em frente nas coisas que pensamos em nossa cabeça, mesmo que tenha um perigo muito grande nos esperando? Disparou Gertrudes.

O sacerdote respondeu na bucha:

 - Vá em frente,  não olhe demasiado para trás para não ficar com torcicolo, faça o que precisa ser feito. Cada dia sempre tem a sua cota de tarefas inadiáveis, algumas das quais escrevemos em nossa agenda, e outras que surgem ali na hora e são tão urgentes quanto as outras. Faça o que tem que ser feito, mas não faça falando, faça fazendo, a não ser que a sua ação seja a fala, então abra a boca e acredite  que aquilo que precisa ser dito vai sair de sua boca.

O padre foi respondendo, andando e não olhou para trás. Simplesmente passou como um vento rápido de verão.

Padma aproveitou a oportunidade e perguntou a um pescador que estava na beira da lagoa tentando pescar algo se devia esperar que o peixe mordesse a isca.

- Sim e também do mesmo jeito com as outras coisas da vida diária, desde escovar os dentes até atravessar a rua.

- Mas neste caso você está parado sem fazer nada. Objetou Gertrudes.

- Tenha sempre a noção de que há um momento ideal  para cada ação, um momento que gasta menos energia e produz mais resultados. Não fique esperando este momento, mas aprenda na ação a descobrir o melhor momento. Às vezes, é preciso ficar quieto porque esta é a ação correta. Disse Padma.

O pescador voltou o seu olhar para as águas encardidas da lagoa. As duas mulheres seguiram o seu caminho.

Então Padma disse:

 - Olhe para o céu, respire ar puro, oxigene bem os pulmões, e beba água pura, alegre-se em seu coração por cada oportunidade, diga sempre muito obrigado por cada coisa.

- Você está muito Polyana para o meu gosto, diga-me onde leu todas estas baboseiras. Falou Gertrudes com rispidez.

Viajaram em silêncio por ruas e avenidas, vendo pela janela do ônibus coletivo, o movimento da noite em alguns bairros residenciais, algumas  pessoas saindo de casa após o jantar e colocando as cadeiras na calçada.

Então Padma falou:

- Vale a pena descobrir que este pequeno ato abre as portas dos maiores obstáculos e acima de tudo mantém a mente focada em deus.

- Mas que é deus, para nós que vivemos numa sociedade onde a presença de algo divino está tão massificada pela mídia? Atacou Gertrudes.

- Fica difícil até pedir que se exercite a intuição e a calma. Concordou Padma.

- Hoje temos que gritar  para ter a sensação de deus.

- Mas perceba que deus é uma palavra difícil de ser trabalhada, e há somente uma maneira de aproximar-se de seu sentido: através da calma, da pratica desinteressada da caridade, da mente limpa e de um imenso sentimento de gratidão. Pouco importa o que é, como é, onde mora, pois estas questões mesmo que corretamente trabalhadas pela teologia, nas mão cotidianas transformam-se em muros que separam-nos do sentido de deus.

Gertrudes viu que a colega não iria capitular e aceitou filosofar pelas beiradas.

- Um bom exercício é alimentar-se do que é bom, das coisas boas, para o corpo e para o espírito.

- Espírito, é outra palavra, imagine o que é esta coisa, algo imaterial que vive dentro de nosso corpo, mas para ser feliz a compreensão dela é essencial, não aquela compreensão dos dicionários, mas a compreensão que brota da experiência subjetiva, não há outro modo de aproximar-se desta palavra.

O semblante de Gertrudes contorceu-se diante daquele momento de filosofança e disse:

- Isto é filosofança!

- Esta palavra não existe.

- Eu acabei de criar.

Padma  não se abalou, olhou para a lua cheia que parecia observa-las com curiosidade e falou mansinho:

-  Apesar de ela estar no dia a dia  não é possível comprá-la.

- Você está falando de quê?

- Será preciso fazer  uma jornada ao nosso interior. Há que se descobrir coisas muito sérias e que podem ser a chave de todas as nossas experiências.

Gertrudes deu uma balançada no peito que os seios quase pularam para as costas. Explodiu toda a sua ira contra a era de aquários. Disse o que pensava: que ela era uma mulher sem preocupações filosóficas abstratas, que um homem nu numa cama era toda a filosofia de que precisava.

- Caiu na rede eu devoro e só fico triste quando não sei o que fazer com a minha solidão. Arrematou Gertrudes.

-   Então aprenda a meditar.

- Meditar???

- A primeira e mais básica técnica é aprender a parar o corpo e prestar atenção na respiração, somente isso. Um exercício útil é colocar o despertador para dez minutos e sentar-se em uma posição confortável e ficar imóvel observando o próprio movimento respiratório. O truque de estabelecermos um tempo serve para aprendermos a ter paciência e esperarmos o alarme do relógio. Comumente ficamos querendo saber quanto tempo falta e criando ansiedade, então é preciso aprender a viver este tempo sem preocupação, depois aumente o tempo para trinta minutos, sessenta ou mais conforme a sua necessidade. Agende sempre um tempo para estes encontros com o silencio, diariamente, mas faça isso em um lugar que não seja interrompida, pode ser o banco de uma praça, de uma igreja,  um recanto no trabalho, não aproveite, momentos agitados como os tempos no transporte coletivo ou filas de banco.

- Ahá, você não é capaz de enfrentar os tormentos de uma fila básica da Caixa Econômica. Disse Gertrudes como se tivesse descoberto um ponto fraco da outra.

- Quando estiver num lugar como esses em que o tempo parece não andar, será útil desenvolver um exercício de travessia: imagine uma longa ponte de corda sobre um abismo,  imagine que está atravessando esta velha ponte de corda sobre um grande despenhadeiro, cada passo na fila corresponderá a um desses passos cuidadosos que você deve dar para não cair no precipício. Explicou Padma.

- Com a quantidade de pessoas que tem na fila a ponte vai se romper precipitando todos no buraco. Respondeu Gertrudes com ironia.

Padma calou-se e passaram assim neste mutismo mais de uma hora, talvez mais um pouco. Então Gertrudes sentiu-se incomodada e falou:

- Desculpe-me a acidez, sou terrível e a velhice apenas me deixou ainda mais nojenta.
Houve ainda mais silêncio e então Padma disse:

- Ouça a voz de seu coração, mas também ensine o seu coração a não se magoar com coisas à toa. De que adianta ouvir sempre a voz do coração, se você ensinou-o a ser raivoso e ciumento?  A educação desta voz é de grande utilidade, pois ela dialoga diretamente com a voz da consciência, sendo o principal contato da mente objetiva com o desconhecido reino interior. Quando quiser realizar algo, construa o seu diálogo com a voz do coração e somente depois estabeleça o contato com a voz interna que tem o contato com todas as energias que movem a nossa vida.

Gertrudes sentiu um embrulho no estômago. No íntimo achava aquelas frases um monte de baboseiras. Sorriu com aqueles dentes de pose fotográfica.

- Tão nova... Que desperdício!

Padma sorriu apenas.