Chovia e fazia frio. Todos se sentaram ao redor das pernas da avó, noite de estórias de fantasma, noite de trovões e relâmpagos assustadores. A luz elétrica havia sumido como se fugisse das terríveis dores da natureza. Apenas uma vela iluminava o pequeno grupo num recanto da sala. Todos estavam com medo e nestas horas o melhor é brincar com o pavor contando estórias de mistérios.
E ao som de um trovão começou a avó:
- “Uma vez, quando eu era pequena, gostava de fazer as minhas próprias bonecas. Morava no sítio e os meus pais não tinham dinheiro para comprar essas bonecas de luxo de hoje em dia”.
A avó descreveu o processo de construção de suas bonecas: pegava um retalho que havia sobrado de outras costuras de sua mãe; fazia um molde de cartão em formato de gente com três tamanhos, um maior para os adultos, um médio para as moças e rapazes e um menor para as crianças; cortava os tecidos nos formatos; depois os costurava e os enchia com restos de pano e palha; fazia as roupas que identificassem quem era homem ou mulher e acrescentava os retoques finais adicionando os cabelos, barba, bigode, unhas pintadas de acordo com cada boneco ou boneca; finalmente dava um nome a cada um deles. Neste artesanato criava vários núcleos familiares, cada qual com a sua própria personalidade.
A vida no reino das bonecas tinha certa parecença com o mundo com o seu ciclo de vida e morte.
Aproveitando uma rajada de vento a avó continuou a estória:
- “Vez por outra morria um filho, então eu ia até a beira do rio e com a água fazia uma mistura de barro, moldava pequenas urnas funerárias para os pequeninos defuntos e depois promovia o enterro dos anjinhos com velório e o cântico de incelenças.”
- “Que são incelenças, Vó?” Perguntaram as crianças.
- “São as cantigas para despachar os mortos para o além.”
- “Cante uma, Vó.”
A avó recusou explicando que não é de bom augúrio cantar estas cantigas sem um motivo, porque do jeito que manda as almas para lá, por outro lado também pode atrair. Mas as crianças insistiram tanto e tanto que a avó concordou em fazer uma demonstração.
Disse a Avó em tom solene:
- “Com o morto estendido na sala dentro do caixão ou em cima de uma mesa, vestindo a sua mortalha...”
- “Que é mortalha?” Interrompeu Raulzito.
- “É uma roupa que se veste no cadáver”. Explicou a velha senhora e continuou.
- “Então, em volta do morto as carpideiras começavam a cantar.”
- “Carpideira?”, Estranhou a menina Kátia.
- “Carpideiras eram mulheres que vinham chorar o morto e cantar as incelenças que eram assim:”
“É uma incelença da virgem santa vitória”
“Amanhã muito cedinho este anjinho vai embora.”
“Esse cujo vai embora contrito do coração”
“Adeus meu povo, adeus meus irmãos “
A avó continuou a explicação:
- “Então eu ia para a beira do rio, cavava uma cova e enterrava os anjinhos”
Neste instante Kátia saltou de seu lugar e disse:
- “Eu enterrei a minha Barbie que estava sem as pernas , mas não fiz uma cova nem cantei nada.”
A Avó respondeu:
- “Então ela foi mal enterrada”
Então a avó baixou o tom da voz e continuou a estória dizendo que uma vez quando ia passando pela beiro do rio ouviu aquela voz chamando:
-“Kátiaaaaaaaaaa...”
A menina Kátia agarrou-se à perna da avó pois tinham o mesmo nome.
- “Kátiaaaaaaaaa...”. Repetiu a avó imitando a voz misteriosa.
Uma voz fininha que se perdia pelos monturos, mas a avó fazia que não estava entendendo e os enterros continuaram.
A sua mãe lhe havia prevenido que não fizesse enterro de boneco grande, mas como a morte sempre ronda as casas de bonecas, foi fatal a morte de alguns deles e todo o ritual foi cumprido à risca, inclusive com as incelenças cantadas dozes vezes como manda o costume.
-“Então outra vez, depois de muitos enterros, quando eu passava pela beiro do rio, ouvi um assovio.” Continuou a avó.
Neste instante, as crianças e a avó sentiram o vento da chuva entrar pela sala fazendo um barulho estranho. Um clarão anunciou um trovão gigantesco, que fez tremer as paredes.
Todos ficaram imóveis, mas a avó quebrou o pavor inicial e continuou:
-“Então, outro dia quando eu ia passando novamente pela beira do rio, eu escutei a voz de uma mulher dizendo:
-“ Menina, volte aqui e me desenterre”.
A avó continuou aumentando ainda mais o tom de mistério:
-“Foi uma voz audível como se uma pessoa tivesse falado, uma voz que quando tocou o meu ouvido provocou um arrepio em toda a pele de meu corpo. Corri para contar para a minha mãe que me disse que havia avisado para não cantar as incelenças completas e nem enterrar bonecos adultos. No outro dia fui até a beira do rio e comecei a desenterrar os anjinhos e alguns adultos, mas não lembrava onde estavam a cova de todos.Havia marcado elas com uma cruzinha feita de pauzinhos amarrados com linha e o tempo e outros passante deviam ter passado por cima e desmarcado os lugares. Então, toda a vez que ia se aproximando do rio, de longe, já via que alguma coisa de misteriosa iria acontecer, mas nem sempre era possível evitar aquele caminho e sempre escutava uma voz chamando. Até que um dia acompanhada de minha mãe perguntei:
-“ Mãe, a senhora ouviu? E minha mãe deu-me um carão”
-“Deixe de fazer pantim. Isto é invenção de sua cabeça.”
A avó arrematou a estória:
- “ E assim fiquei por muitos anos escutando aquela voz que vinha reclamar de alguma coisa e em noites de chuva, como hoje, aquelas vozes ficavam gemendo e dizendo que estavam com frio.”
A criançada estava congelada de medo e qualquer silvo do vento já era identificado com uma voz ou uma gargalhada de uma boneca enterrada.
A menina kátia disse:
-“Eu pelo menos enterrei a boneca que já tinha se acabado, pior foi Raulzito que enterrou todo os bonecos de seu exercito de plástico vivos, só por maldade”.
- Enterrou os soldados vivos? A avó perguntou.
- “Eles estavam querendo fazer uma vigem ao centro da terra”. Raulzito argumentou.
- “Agora todos eles vem assombrar você”. disse Kátia.
A Avó interrompeu.
-“Paremos com estas estórias, que é hora de todos irem para a cama.”
Mas nesta noite, tiveram que encontrar uma forma de por as crianças para dormir agarrados a perna da avó.
E assim fizeram um ninho em suas pernas e não havia força que os tirasse de lá.
A avó não conseguia dormir com o incomodo da situação. Ficou então lembrando das coisas de sua infância e rindo da inocência dos pequenos netos. Um clarão tomou o quarto e o trovão rasgou a natureza como uma grande gargalhada e ela pensou ouvir uma voz chamando:
-“Venha me tirar daqui que eu estou com frio”.
A avó voltando à sua meninice agarrou-se com os netos, cobriu-se toda e adormeceu.
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