22 de jan. de 2022

A GORDA

  Nós vemos apenas o reflexo do mundo, e não tal qual é. Assim, a primeira luz que vem refletida de qualquer coisa fica guardada em nossa memória. A sua aparência primeira era de uma mulher gorda, gordíssima. Talvez essa minha fala possa parecer uma agressão, uma manifestação de preconceito, um ato de gordofobia. Mas o que se há de fazer? Ela era um balão, e era assim que os meninos da Rua Esperança a chamavam, era o seu segundo nome.

Ela impunha respeito com o seu corpanzil de dinossauro - desculpem-me a piada de mau gosto. Ela era tão avantajada que até o cachorro pitbull raivoso e assassino do policial aposentado que morava na casa da esquina, e que quando desfilava pelas ruas, todos se trancavam dentro de casa - não vou aqui falar dele, que era um rabugento que não merece nem mesmo as minhas lorotas deselegantes - pois até o seu monstro canino amofinava diante dela. Ela era a expressão do poder de alguma deusa misteriosa que neutralizava o mal, sendo secretamente admirada por causa disso.

A essa altura, vocês devem estar me perguntando quem era aquela criatura, que como já disse era obesa, e se chamava Mariane. Descobri o seu nome por acaso, porque também compro pão na Padaria de Genésio, e ela também foi comprar o seu pão e pediu para guardar a conta no caderninho. Vi quando Bernadete, que fica no caixa anotou o nome dela: Mariane. Assim soube de Mariane. “!Meu deus, ela tinha um nome”- pensei.

Ela percebeu que eu havia lido o seu nome, e pela primeira vez eu olhei o seu rosto. Ela tinha os olhos verdes, da cor das folhas novas do pé de figueira. Os cabelos eram de um tom castanho-claro que brilhavam quando o sol refletia neles. o seu nariz era pequeno e um pouco arrebitado, e a boca era como um arco egípcio de atirar flechas. Olhando o seu rosto, de verdade, no fundo dos olhos, eu vi aquela mulher, Mariane, e desde aquele dia ficava esperando o momento em que ela apareceria para comprar pão. Ela era a rainha do pão; comprava uma dúzia somente para si mesma, já que morava sozinha em um casarão velho que ficava no final da rua encostada com a cerca da Reserva Florestal. 

Assim a gorda, deixou de ser a gorda e se tornou Mariane, e eu gostava de olhar no fundo de seus olhos…

Certo dia, ela não foi comprar o pão de cada dia. Não achei nenhuma dificuldade em deixar passar o fato, mas quando ela sumiu por uma semana então comecei a ficar angustiado. Ninguém na rua ficou preocupado com ela, somente eu, que ficava olhando para a sua casa para ver se acontecia alguma coisa. Convenci-me de que deveria ir até lá para verificar se não estaria acontecendo alguma coisa- inspirei-me num desses seriados policiais - quem sabe não teria ocorrido alguma coisa. Antes, porem, eu comentei com as pessoas da vizinhança sobre o sumiço dela. Ninguém se importou. Tem pessoas assim que não parecem fazer falta a paisagem, mesmo que sejam extremamente gordas. 

Numa sexta-feira, dia de lua nova, esperei que caísse o silêncio da noite, e que o movimento da rua fosse desaparecendo. Antes porém dei um jeito de quebrar a lâmpada de iluminação noturna do poste que ficava em frente a casa de Mariane. Eu esperei que tocasse meia-noite no sino da igreja. Ainda tem esse detalhe de minha rua, que tem uma igreja pequenina, na qual o padre Fernando teve a idéia de colocar um relógio que bate as horas; é algo sem sentido, em um tempo no qual todas as coisas são digitais; os meninos não brincam mais na calçada e sim com os videogames; nem fazem aventuras de verdade, mas transportam-se para dentro do mundo das series ficcionais transmitidas pela internet. No entanto essa era minha rua. 

Voltemos ao relógio da igreja. Com a décima segunda badalada eu fui pelos recantos mais escuros, Vestindo uma calça com motivos de camuflagem na selva, uma camisa verde-oliva para me sentir como um general de alguma guerra fora do tempo, e calçando botas; não eram botas de verdade, mas um tênis cano longo de cor preta, e um boné azul. O fardamento de minha incursão guerreira a casa de Mariane não estava dentro dos padrões consagrados pelo imaginário popular, mas foi o que eu arranjei.

Eu fui caminhando na intenção de que estava invisível, mas percebi quando Dona Maroca, a nossa repórter geral para assuntos da vida alheia estava de prontidão em sua janela, mas acho que ela não me viu. Ela já tinha quase 80 anos e  a sua visão não era mais tão aguçada quanto antes. Fiquei imóvel esperando que ela trancasse a sua janela. Com a batida do relógio anunciando uma da manhã, finalmente, ela apagou as luzes de sua casa. Acho que ela deve ter pensado que eu  era somente uma visagem. 

Prossegui com a minha aventura.  Empurrei o portão, que estava sem ferrolho. Esgueirei-me pelo jardim empunhando a minha pequena lanterna de led que havia comprado na banca do chinês da feira que vende todas essas quinquilharias importadas. É preciso ilustrar que os muros da casa da gorda eram altos e ninguém tinha a menor curiosidade do que havia lá dentro, nem mesmo eu, mas quando me vi dentro de seu jardim assustei-me com os canteiros de flores que estavam podados, sem a presença de matos inoportunos, e havia até uma pequena fonte com um peixinho jogando água pela boca.

A casa tinha paredes com partes do reboco caído, revelando tijolos vermelhos maciços. O piso arranhado pelo movimento da mobília. A porta frontal com 3 metros de altura com o seu verniz escuro descascando tinha uma argola de bronze polido do tamanho de minha mão que deveria servir de campainha.

Imaginei como era que uma pessoa gorda teria a coragem, ou mesmo a disposição para limpar uma casa. Os serviços domésticos são muito chatos. Todos sabem disso. Mas a casa dela não tinha teias de aranha, nem areia nos recantos, nem poeira sobre a mobília, mesmo com uma semana após o seu desaparecimento da padaria. 

Passou-me pela cabeça a ideia de que ela teria mudado de padaria, talvez percebendo as olhadas profundas que havia dado em seus olhos - que assim fosse - essa era a única explicação para o estado de arrumação da casa. 

Eu então resolvi fazer uma volta de averiguação ao redor do imóvel, para assegurar-me de que estava tudo certo.  A casa ficava no meio do terreno e não havia nada fora do lugar. 

Quando ia passando pelo quintal percebi que havia uma pequena porta no muro que fazia fronteira com a reserva florestal. Era um portão camuflado com  algumas plantas trepadeiras de modo que, se não se olhasse com atenção, pensaria-se que seria somente  um gradil para a planta. Mas era um portão. 

Ainda fui até ele, mas lembrei-me de manter o foco, que era entrar na casa. A porta da cozinha estava somente encostada de modo que não tive problemas para entrar no lugar. Usei a luz débil da lanterna e fui me sorrateiramente deslizando para ver se havia alguma presença na casa. Não havia ninguém, exceto que sentia que a casa estava sendo vigiada por alguma coisa. Nisso pensei que talvez ela tivesse colocado câmeras de segurança. Mas não isso era impossível, a gorda não era uma pessoa que aparentasse ter recursos  para isso. Era somente uma gorda, muito gorda que apesar de imensa era uma nulidade existencial. 

Havia a sensação de que algo estava me observando. Eu podia deduzir devido ao estado de arrumação das coisas. A casa não era um lugar imundo com restos de comida jogados no chão, paredes sujas de gordura, ratos correndo pelos cantos, teias de aranha e baratas voadoras. Não, a casa era bonita como se fosse de uma princesa magrinha e linda.

No entendimento de muitas pessoas as princesas devem ser todas esbeltas. 


Fui em cada cômodo. Na sala havia um sofá de tamanho normal, uma TV antiga daquelas de válvula, um radio também de válvula, cortinas bordadas com motivos florais, nas paredes alguns quadros de paisagens marítimas. Um agradável cheiro de alecrim. O quarto da gorda me surpreendeu. As paredes eram rosa e havia um mobile com borboletas pendurados no teto, a janela estava coberta com uma cortina de véu muito fino que dava para ver um canteiro de flores do jardim, mas a sua cama era pequena, e tinha o tamanho adequado para uma menina de 14 anos. Resumindo, o quarto da gorda parecia ser um quarto de boneca. Pensei - “Não, aquele não deveria ser o quarto da gorda”. Nem o quarto, nem a cozinha, nem qualquer daqueles cômodos da casa pareciam pertencer àquela personagem que todos na rua tratavam com indiferença. 


A única coisa que sabíamos dela é que, segundo se contava, ela morava ali desde pequena, e quase não saía de casa. Tanto é assim que os mais velhos não lembravam dela quando criança, mas sabiam que ela estava lá. Os seus pais, também se via pouco, e saiam muito a negócios de modo que a casa ficava aos cuidados da menina, quando pode ficar sozinha em casa; antes sabia-se de uma babá igualmente obesa. Aliás os seus pais eram também avantajados em tamanho. Diziam bom dia, boa tarde e boa noite, e não conversavam sobre a sua vida. 


Sim, mas continuando o relato de minha investigação - se a gorda não estava ali, se a casa não parecia adequada para a vida de uma pessoa obesa, onde estaria aquela figura? Para onde teria ido? O que seria aquilo?  Estava absorto com os meus pensamentos quando percebi que alguma coisa se movimentava no quintal. O meu sangue gelou, arrepiei-me, o coração disparou numa taquicardia, pois não tinha como me defender de algum ataque, e nem mesmo um pedaço de pau havia levado comigo.


Ainda estava paralisado quando entrou um vulto, que percebeu a minha presença. Houve um momento de silencio. “Você tem noticia de Mariane?” - foi o que eu perguntei. Houve um silencio daqueles de filme de terror. Naquele instante eu preferia que estivesse de fato dentro de um filme da TV em que sempre aparece uma ajuda externa para salvar o herói da situação difícil. No caso, eu seria o herói, óbvio.


Então arremeti mais uma fala no estilo: “Percebi que a gorda não foi mais comprar  pão e fiquei preocupado com a conta”. Uma desculpa esfarrapada que não convenceria  ninguém; cobrar uma conta de madrugada com uma lanterninha de Led. A sociedade tem o hábito de criminalizar as pessoas que estão fora de seu padrão. O vulto não disse nada afastou-se para o escuro do quintal. Eu fiquei ali congelado com medo até do movimento do vento nas árvores. 


Esperei assim pelos primeiros raios de sol. À medida que o sol foi clareando a aparência da casa foi se revelando 

semelhante às minhas primeiras expectativas, havia sujeira, os móveis tinham uma dimensão proporcional ao tamanho da gorda; tudo fedia a restos de comida e gordura, e dava para ouvir os guinchos dos ratos correndo pelas vigas do teto. Com a manhã estabelecida saí pela porta da frente que também estava somente encostada e fui para casa com  a alma petrificada. Adormeci em minha cama como  se tivesse chegado de uma guerra  nuclear. 


Certo dia, algumas semanas depois da minha aventura na casa da gorda, eu tinha ido até a padaria. Mariane estava saindo com o seu saco de pães, olhou no fundo dos meus olhos e sorriu.




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