3 de out. de 2024

O AZOUGUE

Roberval estava no seu quarto às duas horas da madrugada, escuro, numa cama de madeira com uma das pernas amarradas com um cordão de agave para não cair. Ele estava sentado sobre o colchão arrumado sobre um estrado de varas de cipó sabiá. Chama cipó sabiá porque são finas como as perninhas de um pássaro com esse nome. No quarto contíguo ao dele estava seu irmão, um outro homem, ou era, porque parecia que ele havia sido possuído por um azougue; dava para ouvir a sua respiração com um ronco forte como um porco em agonia de morte.

 Roberval acendeu um candeeiro a querosene com o pavio muito curto que jogava uma luz pálida e bruxuleante no ambiente. Os seus olhos passearam pelas paredes do quarto. As paredes eram brancas, tinham imagens, recortes retirados de revistas e não quadros emoldurados. Tinha um da santa de sua devoção, Nossa Senhora da Luz.

 Aqueles eram momentos de ansiedade aguardando o fim da madrugada e a chegada do sol. Ele estava sentado próximo a janela construída com pedaços irregulares de madeira e pelas brechas dava para ver a rua lá fora, com casas simples, calçamento de paralelepípedos irregulares. Um logradouro da periferia da cidade de Guarabira, que fica no estado da Paraíba, que ficou famosa na televisão com o aparecimento de luzes estranhas no céu.

 Fazia parte de minha atividade de pesquisa acadêmica ir até àquela cidade, pois eu estava fazendo um levantamento sobre os possíveis sítios arqueológicos indígenas da região. Numa de minhas viagens àquele lugar, eu mesmo vi uma dessas luzes; ela veio, parou sobre uma rua e depois chispou para o infinito. Coloquei aquilo na conta de uma alucinação.

 Era um lugar com muitas estórias. Noutra oportunidade soube de um homem que dizia, que havia visto uma criatura de aparência humana entrar numa rocha que ficava na serra onde está assentada uma imensa estátua de um frade chamado Damião, famoso por suas pregações. Dizem que esse religioso tinha poderes místicos; que calou para sempre os sapos que cantavam numa lagoa de uma cidade vizinha que estavam atrapalhando o seu sermão; não entendo nada disso, de modo que deixarei esse assunto por aqui.

 A nossa estória mistura-se com a crendice popular. Conversei com uma vendedora de tapioca, que é uma comida típica feita de massa de mandioca. A sua banca ficava na frente da igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz. Ela contou-me que uma moça também contou que havia visto um homem entrar numa pedra, que tentou segui-lo, mas quando tocou a rocha a sua mão ficou queimada. O médico do posto de saúde disse que aquilo não era queimadura de fogo. Ela virou piada entre os amigos. ”Onde já se viu uma pessoa entrar numa pedra?”, caçoavam dela. Ela envergonhada mudou-se para um sítio distante de todos.

 Também havia o relato de um homem no mercado público da cidade, que pedia esmolas exibindo uma queimadura na perna dizendo que fora causada por uma das luzes que apareceram no céu.

 Eu escutei primeiramente essas estórias que estou contando aqui, numa barbearia, que fica na Praça da Cultura no centro da cidade. Fiquei tão impressionado, que em meus exercícios de andanças matinais, comecei a pesquisar e consegui chegar até a casa de Roberval, um homem transtornado, que fora vítima daqueles acontecimentos estranhos. Eu fiquei perturbado quando vi as marcas que havia nas paredes, desenhos queimados em baixo-relevo parecidos com as inscrições pré-históricas de uma pedra que existe em uma cidade próxima chamada Ingá.

 Algum tempo depois, em um banco da rodoviária municipal, o acaso me fez conhecer Roberval pessoalmente, enlouquecido, falando coisas desconexas olhando para o monte onde fica a estátua majestosa do Frei Damião. Daquele mosaico de falas desencontradas, remontei partes do quebra-cabeça; então, comecei a escrever esse relato como uma forma de libertar o meu espírito, após as últimas notícias que recebi de lá.

 Roberval era professor de uma escola pública. Era um homem de estatura mediana, pele branca, cabelos, lisos com uma franja penteada para o lado. O seu corpo era um pouco gordo, mas não obeso. Tinha alguns cabelos brancos apesar dos seus 37 anos. Usava um bigode fino que desenhava o lábio superior e faltava-lhe o dente canino esquerdo.  As mãos bem definidas, com as unhas roídas demonstrando a sua ansiedade.

 Juvenal, não o conheci, era mais jovem, cabelos grandes, louros, encaracolados, tinha 25 anos, gostava de andar descalço usando bermudas coloridas. Tinha uma barba rala abaixo do queixo, sobrancelhas muito grossas, olhos azuis, e uma pele amarelada, graças a genética das misturas que faziam nascer numa mesma família um verdadeiro caleidoscópio de cores e formas. Ele era mais inquieto e curioso que Roberval. Gostava de falar com as pessoas usando um bordão- “E aí, tudo tranquilo?” Era um cara com a aparência libertária de um pirata, que trabalhava como gari na limpeza urbana. As pessoas o chamavam de galego da limpeza.

 Voltando ao começo dessa estória, Roberval queria libertar o irmão do azougue que havia se apossado de seu corpo. Era algo estranho que se sucedeu após Juvenal ter ido até uma dessas pedras onde apareciam os seres. Dizem que ele ficou de tocaia, e quando um daqueles seres saiu da pedra, Juvenal aproveitou o momento, viu que a passagem havia ficado aberta, e entrou na pedra. Nunca mais foi o mesmo. As pessoas começaram a notar mudanças no seu comportamento. Ele começou bebendo muita cachaça, e somente depois de um tempo, é que Roberval percebeu que o irmão estava possuído pelos seres da pedra, o azougue.

 Uma das coisas mais difíceis de aceitar é a credulidade popular quando ela se instala em uma comunidade. Juvenal depois de ter saído da experiência da pedra começou a dar sinais de loucura e tinha já começado a ser rejeitado pelos vizinhos.

 Ficava dizendo que as mãos estavam queimando, é certo que algo estranho acontecia mesmo, eu conversei com alguns vizinhos que disseram que à noite as suas mãos pareciam brilhar como se fosse aqueles objetos fosforescentes. O fato é que certa vez o cachorro de Manuel, um vizinho, fora atropelado por um caminhão e ficara com as duas pernas esmagadas; a solução era sacrificar o animal para o desespero do dono, mas nesse remoinho apareceu Juvenal, que pegou o animal em seus braços e levou-o consigo; ninguém ousou reclamar da doidice. Somente Manuel ficou assim, tristonho; era o destino que o cãozinho terminasse o seu destino, mas para surpresa geral, na manhã seguinte, lá estava Xareu correndo pela rua com as pernas completamente saradas. Aquilo foi uma coisa que tirou Juvenal da condição de maluco para a condição de santo.

 No começo de sua santidade, ou poderes especiais, foram-lhe trazidos todo tipo de animal, gato, periquito, cavalo e até um porco. Tudo o que Juvenal tocava voltava a sua condição de saúde perfeita, mas não funcionava sempre, e não conseguia fazer o mesmo milagre com as pessoas, ao contrário, em muitos casos até piorava a situação, e foi isso que o tornou-o uma figura temida, ele não tinha mais o seu emprego e vivia dos cuidados de seu irmão Roberval.

 De quando em quando ele desaparecia pelo mato, e a conversa era de que ele estaria com as pessoas que moravam nas pedras. Nunca ninguém tinha visto aqueles seres, que eram mais uma fantasia, algo que entra para a imaginação popular.

Num desses desaparecimentos, os vizinhos começaram a notar que havia algo de diferente nas paredes de sua casa, e então ao entrarem e irem até o seu quarto encontraram as paredes cobertas com inscrições misteriosas.

 Então aconteceu algo inesperado, a filha de um dos vizinhos desapareceu. Foram feitas denúncias à polícia. As investigações apontaram um vazio. Vasculharam toda a vizinhança, as cidades vizinhas e nada foi encontrado.

 Uma semana depois a menina reapareceu, assim do nada, caminhando pela rua, como se nada tivesse acontecido. Ninguém suspeitou de Juvenal, pois o mesmo estava desaparecido fazia um mês. No entanto, quando a menina apresentou uma certa luminescência nos olhos, algo que não foi percebido por todos, mas por Roberval, que por conviver mais com Juvenal percebera que havia um certo brilho a mais em seus olhos. Poderia ser somente uma impressão de sua fantasia, mas agora diante daquela menina, Roberval suspeitou que estivesse acontecendo algo mais sério.

 Naquele rebuliço reapareceu Juvenal, disse-me uma outra pessoa com quem conversei. Juvenal estava mudado e não parecia mais aquele maluco, mas sim uma pessoa normal, organizada, e diferente daquele outro que todos conheciam. Retomou o seu emprego e nada mais fez para que desconfiassem de algo. Era visto tratando a todos muito bem, e algumas vezes sucedia de acontecerem, alguns eventos maravilhosos, um animal era curado de algo, ou uma pessoa, mas não era sempre, e nisso ele ganhou a fama de rezador, que ele assumiu sem cerimônia. Nesse seu novo papel, aquela menina lhe servia de ajudante, e às vezes, Roberval tinha a impressão de que havia algo, que eles falavam com os olhos, que não dava para ser compreendido por mais ninguém.

 Outra coisa que preciso mencionar, é que Roberval, ficou de tocaia quando o irmão saiu à noite em direção ao mato e o seguiu, e para sua surpresa viu quando ele se encontrou com outras pessoas, que estavam vindo de outros pontos da cidade, todos indo em direção a uma cachoeira muito conhecida pelos turistas que visitam a cidade. O mais estranho é que eles caminhavam pelo mato sem dificuldade alguma, nem com a natureza acidentada do terreno nem com a vegetação. Roberval disse-me que teve medo de continuar quando percebeu a presença da menina. O que era aquilo? Ficou quieto em sua posição até que o sol começasse a despontar, assim desceu para a estrada e pegou o caminho de volta junto com outros caminhantes comuns. Naquele dia ao chegar em casa encontrou-se com Juvenal que o saudou normalmente com um bom dia.

 Não havia motivo para preocupação, exceto com a noite. Juvenal não se comportava como uma pessoa comum, mas tinha o sono agitado, e numa daquelas noites Roberval escutou vozes vindo do quarto do irmão, que falava dormindo um emaranhado de vozes estranhas, algumas estridentes e sem sentido para ele. Noutras parecia escutar a voz do irmão pedindo socorro. E foi naquela noite que ele decidiu que era preciso libertar o irmão do azougue que o tinha possuído. Não sabia qual era a intenção daquela coisa que havia tomado o corpo de seu irmão. Não sabia explicar. Nem como haviam tantas pessoas de vários lugares. Estariam todas possuídas também?

 Nas minhas pesquisas soube que Roberval tinha ido procurar uma senhora rezadeira, que atendia as pessoas da cidade e redondezas fazia muitos anos. Fui conversar com aquela senhora. Chamava-se Selma, Dona Selma rezadeira. Ela contou-me que aconselhou Roberval a não mexer com aquilo, que era provável que os seres das pedras depois de um tempo deixassem Juvenal de lado, que vez ou outra isso acontecia com algumas pessoas, e que ele não se preocupasse com as atividades de rezador de Juvenal. Ela recomendou a Roberval a manter distância daquelas criaturas, pois elas viviam naquela região há muito mais tempo do que os primeiros habitantes do Brasil, que elas não eram daqui, mas que também não sabia dizer de onde eram, que já tinha encontrado com um deles, mas que não fora abduzida. Eles não fazem mal a ninguém, mas não os irrite.

 Bem, pelo visto Roberval não obedeceu aquele conselho e planejou um modo de descobrir de onde vinham e assim libertar o irmão. As pessoas tem a ilusão de que podem libertar os outros das coisas que desconhecem. É sempre muito arriscado fazer essas aventuras sem conhecer o terreno em que se pisa. Ele organizou-se para seguir a menina, pois isso daria menos na vista, assim ficou prestando atenção às movimentações dela. Enquanto isso, a fama de rezador milagroso se espalhou e todos os sábados à tarde durante 1 hora, Juvenal atendia algumas pessoas, que colhiam benefícios de sua habilidade. Em outros aspectos como já escrevi, Juvenal era uma pessoa comum. Somente Roberval sabia o que se passava na escuridão. Soube também que a menina também falava à noite, mas os pais diziam que aquilo era um mal de família

 Essa parte que vou narrar, quem me contou foi Dona Selma. Roberval seguiu a menina e viu que ela se adentrava no mato em direção a um paredão de pedra. Ela disse que não ia me revelar a localização do mesmo para minha própria segurança, pois como eu era muito curioso poderia querer ir até lá também. Roberval viu a menina entrar na pedra. Ele esfregou os olhos, não acreditou no que havia visto, mas não teve a coragem de se aproximar. Ao invés disso foi até ela contar o ocorrido. Dona Selma explicou-lhe que às vezes aqueles seres pegam pessoas do mundo humano para realizarem tarefas para eles, mas que tudo é feito com muito cuidado para não revelar o seu segredo, que ela achava que Juvenal havia sido uma exceção, que ele havia entrado lá de alguma maneira sem ser convidado, o que gerara aquela confusão toda no prelúdio desses acontecimentos. Diferente da menina, ou da família da menina, quem sabe.

 Contam que em um mês de fevereiro foram muitas luzes no céu, tanto que chamou a atenção de muitas pessoas que estudavam esses fenômenos. Naqueles dias sumiu Juvenal e a menina, primeiro Juvenal e depois a menina. Ora o que poderia ser aquilo que desafiava a lógica? Então Roberval decidiu que a solução para aquilo, era impedir que aquelas criaturas continuassem a se servir das pessoas. Era preciso libertar Juvenal e a cidade do Azougue.

 O plano era bem simples. Ele colocaria um remédio para dormir, algo forte, na comida de Juvenal, e quando ele adormecesse, iria conduzi-lo para um hospital psiquiátrico. Foi naquela noite que o irmão no quarto ao lado guinchava como um porco. Era o azougue lutando para manter o corpo de Juvenal em seu controle, mas o corpo restava adormecido, somente a energia do azougue é que gritava enquanto o espírito do outro repousava dentro daquela carne. Os grunhidos eram tão altos que acordaram a vizinhança que viera ficar de pé em frente a sua casa. Quando Roberval percebeu havia uma multidão em sua calçada.

 Alguns entraram para ver o que estava acontecendo e viram o corpo de Juvenal se retorcendo e dando espasmos na cama que o elevavam a tres palmos de altura, e tinha momentos em que parecia flutuar. Nisso, apareceu a menina, ela olhou duramente para Roberval, depois tocou a cabeça de Juvenal que se acalmou, colocou-se de pé e caiu. As pessoas acharam que, como a menina tinha sido a sua ajudante, podia ser que tivesse feito algum tipo de reza. Juvenal foi dado como morto pela equipe da emergência médica que fora chamada. Roberval foi inocentado de alguma culpa no acontecido, e na precariedade da polícia cientifica, ficou apenas a superfície dos fatos. Se tivessem feito um exame teriam encontrado a presença dos barbitúricos, que talvez não dessem para matar, mas nunca se sabe a resistência de cada organismo, nem tinha sido essa a intenção original.

 Aquela comunidade, no entanto, passou a tratar Roberval com muita dureza. Ele percebeu que haviam outras pessoas semelhantes a menina também morando ali. Roberval teve que sair de casa porque a mesma foi destruída misteriosamente. Ele preferiu não denunciar; ficara preso ao último olhar do irmão. Não era para aquilo ter acontecido. Roberval passou a andar pelas ruas e vez ou outra encontrava com pessoas que tinham aquele mesmo brilho nos olhos. Descobriu que aqueles seres estavam muito mais misturados entre nós do que poderíamos imaginar, e não somente ali.

 Certa vez antes de sair da cidade, recebi um recado de Dona Selma. Fui até a sua casa. Ela me recebeu bem. E foi dizendo sem cerimônia: “você remexeu em um bocado de coisa, não é mesmo? A curiosidade mata, conhece esse ditado?” Achei estranho que ela estivesse me dizendo aquilo. “Olhe, você deve ir embora, não olhe para trás, esqueça todas essas estórias; Roberval enlouqueceu porque ninguém deu ouvido a ele; além do que ficou a desconfiança de que a morte do irmão tivera alguma participação sua; essas coisas devem ficar no segredo”, acrescentou. Enquanto ela me falava aquelas coisas eu tive a impressão de que havia um brilho estranho em seus olhos.

 Quando estava indo embora, ao entrar no ônibus que me conduziria a cidade de João pessoa, onde pegaria um avião para retornar para minha casa, vi na face do motorista, uns olhos parecidos com o de uma cobra, foi um relance, somente um relance; ele sorriu.

 Mantive ainda contatos com algumas pessoas que iam a cidade para estudar o fenômeno das luzes, e conheci outras que estudavam os seres  que moravam nas pedras. Passou um tempo sem notícia de Roberval, apesar de que a sua face ainda me assustava quando a relembrava.

 Esta noite enquanto escrevo isso, recebo uma mensagem do barbeiro dando-me a notícia de que aparecera um outro rezador, que era Roberval, que havia melhorado de sua loucura, que voltara para o seu trabalho e agora continuava a fazer as mesmas coisas que o irmão fazia.

 Muitos que passam por ali conhecem os mistérios e as belezas da região, as suas estórias fantásticas. Eu prefiro que fiquem na categoria de estórias, assim nos protegemos da ira dessas coisas. Eu nunca as vi, mas as luzes, eu penso que sim, e os olhos do motorista.

 Hoje pela manhã ao descer no elevador de meu prédio, entrou uma moça, cabelos longos, louros. Ela deu-me bom dia. Eu estava distraído com o meu jornal na mão, então não lhe dei atenção. Ela me perguntou sobre uma notícia sobre as luzes misteriosas em Guarabira. Ao erguer o rosto vi os seus olhos de réptil por um instante. Eu fiquei gelado com a revelação. De fato, na página de trás a que estava lendo tinha escrito a manchete: “Luzes no céu”.

 Essa narrativa pode parecer muito fantasiosa, mas se você puder ir até lá, verificará pessoalmente… todo contador costuma aumentar um ponto, como se diz, mas nesse caso, é o contrário, eu omiti a maior parte dos detalhes para a segurança do leitor.

 João Pessoa, março de 2021

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