30 de dez. de 2024

NOITE BÊBADA

 

- “Ele me bateu porque me ama”, disse Lizabete.


A delegada olhou-a com desprezo, torceu os lábios em sinal de desaprovação. Lizabete estava sentada diante da autoridade policial com o corpo marcado por uma surra que levara, os olhos roxos, hematomas nos braços, um corte na coxa direita, os pés sujos de lama.


Na noite anterior Lizabete estava no Bar Flor da Noite, que ficava localizado na Rua da Areia, antiga via da cidade da Parahyba, hoje decadente. Era um lugar que servia de ponto da vida noturna suburbana, com vários bares e dormitórios dedicados a prostituição. Era quase meia-noite. Fazia frio. A lua em quarto mingante sentava-se sobre uma nuvem, e Lizabete estava sentada numa das mesas colocadas na calçada; olhava para um velho Edifício de Apartamentos que ficava num quarteirão próximo. Ela via algumas varandas iluminadas e pensava que poderia ser feliz, um dia, quem poderia saber, ter a sua família.


- “Dona Elizabete...”, a delegada sinalizou para que o escrivão escrevesse a ocorrência.


-”É somente Lizabete mesmo”, ela corrigiu.


- “Este é o seu nome social, cadê os seus documentos”, pediu a delegada.


-”Eu só tenho o meu corpo”, ela respondeu.


- “A sua carteira de identidade, lembra o número?”, a delegada exigiu.


- “Eu não tenho um número, só tenho o meu amor, nada mais…”, ela respondeu envergonhada.


Naquela noite Lizabete pediu um Martini com azeitona. O vento frio balançava os seus cabelos negros. Lizabete tinhas olhos castanhos, mas gostava de usar lentes de contato azuis, que a transformavam numa visão de uma deusa da noite. Ela gostava de pedir aquela bebida para sentir-se no convés de um navio de cruzeiro indo em direção a uma cidade da Europa. Na sua imaginação as pessoas que passavam eram como se fossem golfinhos, baleias e outras criaturas das profundezas oceânicas. Ela balançava o seu corpo suavemente imitando o movimento do mar.


- “Eu não lembro de outro nome, somente esse, Lizabete”, justificou.


- “E quantos anos a Senhora tem?” Perguntou a delegada.


- “Não sei, talvez 30”, respondeu.


- “A senhora tem registro de nascimento?”, continuou a delegada.


- “E isso importa? Eu posso lhe pedir um favor?”, pediu


A delegada assentiu com a cabeça. A escrivã olhou esperando que se começasse a ditar os termos da ocorrência. A sala era pintada de cor-de-rosa, as cadeiras eram cor-de-rosa, a mesa era cor-de-rosa, a porta era cor-de-rosa, a moldura do óculos da delegada era cor-de-rosa.


- "Por favor, não me chame de senhora, eu sou solteira", falou baixinho.


- “A senhorita percebe que está numa Delegacia de Polícia como vítima de uma agressão, e que o responsável já está sendo procurado?”, disse a delegada.


- “Mas eu não denunciei ninguém…”, ela disse


- “Não precisa, a senhorita é a vítima, e temos muitas imagens dos fatos, que estão circulando pelas redes sociais”, disse a delegada.


Imersa em seu devaneio marítimo, Lizabete imaginava a chegada no porto da cidade de Paris. Do mar ao longe avistava a Torre Eiffel com as suas luzes coloridas. Ela não conhecia a geografia do mundo, que era somente o mar e os seus sonhos. Um homem sentou-se a sua mesa trazendo-lhe para a calçada daquela rua de pavimentação tosca feita com pedras desiguais ainda no tempo que a cidade era uma província imperial. Ela sentiu a mão pesada dele em seu rosto.


- Você sabe quem é aquele homem?, perguntou a delegada


- Sei, ele é meu pai e meu amante, respondeu.


O cor-de-rosa do ambiente se turvou em tons de cinza. A delegada respirou fundo, a escrivã pediu para sair da sala.


Naquela noite Lizabete fora jogada ao chão. Levou chutes na cara, no barriga, nas pernas; foi cuspida não só pelo agressor, mas por outros que se juntaram ao ritual macabro. No chão desacordada teve o seu corpo molhado com cerveja e cachaça.


-Isso é para você aprender a ser homem, alguns gritavam ao redor dela.


Os vídeos do acontecimento se espalharam rapidamente pelas redes sociais. A polícia chegou, recolheu a vítima e levou-a para a Delegacia.


-”Eu vou mandar a senhora, desculpe, senhorita, para fazer o exame de corpo de delito”, disse a delegada, que solicitou a volta da escrivã.


Feitos os procedimentos burocráticos, Lizabete levantou-se trôpega e dolorida. Caminhou até a porta sozinha. Havia uma lágrima no rosto da escrivã.


- “Não machuque ele”, disse Lizabete para a delegada.


- “É a senhorita que está precisando de cuidados”, respondeu a autoridade.


- “Ele me bate, para me proteger de mim mesma”, argumentou Lizabete e saiu da sala.












Nenhum comentário: