27 de mar. de 2011

CAPÍTULO 3 - ÓDIO À CABIDELA

Gertrudes pegou a faca e viu reluzir nela o sol da manhã;  seus olhos com brilhante luz viam o arrebol avermelhado e fazia a sua língua, num movimento quase automático,  lamber os lábios sentindo o gosto de sangue.  Ela mostrou a faca a Padma que não fez qualquer movimento.

- Hoje eu preciso comer uma galinha  á cabidela, disse Gertrudes.

E passaram o café da manhã sem qualquer palavra sobre o assunto.

- Você me acompanha?  Vou ao mercado comprar uma galinha gorda para satisfazer a minha vontade.

- Você deveria deixar de comer  carne animal.

- Não me venha com este papo furado de vegetariana;  hoje eu retorno à minha origem primitiva...

- Mas você já estava se desintoxicando...

- Estou cheia de verduras, cereais, chás  e todas essas coisas insossas.

- Você é uma mulher inteligente.

- Muito bem, mas ainda assim sou uma selvagem no sentido estrito da palavra  e hoje eu quero uma galinha à cabidela.

- Com sangue?

- Ao que eu saiba não é possível fazer um molho à cabidela sem sangue.

, - Não podíamos tentar fazer com soja e molho de tomate?

- Não diga uma blasfêmia.

Gertrudes arrumou-se e obrigou Padma a segui-la. Tomaram o rumo do mercado Central de João Pessoa. Pegaram o  ônibus como duas estranhas e durante o caminho não se falaram. Quando o coletivo parou Padma disse:

- Eu não acredito que estamos indo a um mercado comprar um animal para sacrificá-lo e depois comê-lo.

- Pois acredite...

Gertrudes puxou Padma pela mão em direção ao mercado de galinhas. Este é um lugar bastante peculiar do mercado central, com grandes gaiolas cada qual com muitas aves. O cheiro de pena molhada, excrementos e galinha suja pairam no ar. Padma protestou:

- Os animais são tratados sem a menor dignidade...

- Dignidade de galinha é a panela, arrematou Gertrudes.

- Você me assusta com este instinto assassino...

- Ora, toda esta civilização vive do sangue destes animais...

- É uma civilização de doentes exterminadores da natureza.

- Não precisa ficar com culpa, o seu único envolvimento é servir-me de companhia e não se preocupe que ninguém aqui lhe acusará de ser comparsa desse delito.

Você sabia que uma galinha tem uma alma?

- Na minha opinião ela tem sabor, a carne é mole ou dura dependendo da criação.

-Eu falo de vida espiritual e com direito a viver com plenitude a sua encarnação...

- Padma, você precisa se acostumar com a humanidade do jeito que ela é...

Gertrudes distraiu-se com as galinhas e escolheu um belo espécime gordo e cacarejante.

- Ótimo,  esta parece que está na época da postura e nós vamos aproveitar os ovos antes deles serem postos...

Os olhos de Padma marejaram com finíssima lágrima que correu pela sua face, mas Gertrudes não se abalou, colocou a galinha numa sacola grande que tinham levado com este fim e voltaram para casa. Durante o caminho de volta a galinha cacarejava com certa felicidade, pois o garajau onde estava era fétido e desconfortável. Talvez se passasse na cabeça daquela ave com a sua alma uma esperança de um lugar melhor sem imaginar o seu destino na panela de Gertrudes.

Padma permaneceu em silêncio. Nada mais disse limitando-se a acompanhar apenas com um grande sentimento de compaixão pela amiga.

Ao chegarem a casa Gertrudes dispôs a galinha no recanto da cozinha. Padma intercedeu:

-Não poderia ao menos colocá-la solta no banheiro da área de serviços para que a mesma desfrute de um pouco de liberdade?

Gerturdes ia dizer uma piada, mas diante da verdade das palavras de Padma concedeu esta benesse à galinha antes de sua morte. Padma desamarrou as pernas da ave, aconchegou-a no colo. A galinha sentindo talvez saudade de quando ainda era um pintinho deixou se embalar piando como se estivesse sob as asas protetoras da mãe. Padma deixou-a solta no banheiro , colocou água e um pouco de pão molhado que foi devorado com rapidez.

Gerurdes deu inicio aos preparativos para fazer a sua galinha à cabidela. Pegou a faca e iniciou a amolá-la num ferro de amolar que fazia tempos que não usava.

- Padma, eu sei que você acha estranho este costume de comer galinhas, mas isto que eu estou fazendo eu aprendi com a minha mãe, é a coisa mais natural do mundo, se você quiser pode ir para outro lugar hoje.

- Ficarei contigo.

- Você já sabe o que vai acontecer, não sabe?

- Sim...

- E que eu não vou desistir?

- Não se incomode; eu não vou interromper o seu costume...

Então Gertrudes procurou por uma grande bacia de louça, lavou-a e colocou um pouco de vinagre dentro dela.

- O vinagre é para o sangue não coagular, entendeu?

Gertrudes pegou um grande caldeirão pôs no fogo. E preparou um grande uma tocha de jornal.

- O caldeirão é para ferver a galinha e facilitar na limpeza dos esporões das penas e a tocha é para queimar as penugens que ficam, somente depois disso é que a gente abre para fazer a limpeza interna.

Padma teve vontade de vomitar, mas permaneceu imóvel.

- Também já percebi que vou ter fazer isso sozinha, não é?

Padma não disse nada.

- Não se incomode eu sei me virar, não posso nem lhe ameaçar excluindo de participar do banquete...

Finalizado os preparativos Gertrudes foi buscar a galinha. Abrindo a porta do banheiro descobriu que a mesma havia posto um ovo.

- Ela botou um ovo, maravilha então ela está ovada... Adoro ovinho antes de ser posto, Huuuum, é muito gostoso.

- Este ovo é um pedido de clemência...

- Que seja, vou comer o ovo e a dona do mesmo jeito.

Quando Gertrudes foi pegar a galinha, a penosa  sentindo já os ares de liberdade correu entre as suas pernas em direção à sala.

- Corre, Marieta, corre para se salvar... Gritou Padma.

- Ela agora tem um nome?

- Tudo que tem alma, tem individualidade, que é expressa por um nome...

Gertrudes correu atrás de Marieta, galinha recém- batizada por Padma.

- Corre...

- Padma, não incentive esta rebelde...

Marieta correu para o quarto e ficou cacarejando em cima da cama de Gertrudes, e num ato de extrema revolta fez  um rasgo de fezes em cima do travesseiro.

- Ah, miserável, agora você vai morrer de qualquer modo, eu já estava ficando com o coração amolecido com este papo  de Padma, mas agora descobrimos que você é minha inimiga mortal e eu não vou perdoá-la a não ser quando estiver  no meu estomago.

Marieta cacarejou e correu em direção ao guarda-roupa. Voou depois pelo quarto colocando abaixo perfumes, quadros e outros objetos.  Fez o mesmo na sala, mas sabiamente evitou  a cozinha. No entanto,  quis o destino que Marieta  terminasse nas mãos de Gertrudes que quase a estrangulava.

- Eu somente não mato você estrangulada, sua  bandida destruidora de lares, por que isso estraga a carne.

Gertrudes carregou Marieta pendurada pelo pescoço até a cozinha.

- Padma saia já daqui, pois não quero que você me atrapalhe mais...

- Irei para o meu quarto...

Padma se retirou. Gerturdes  no alvoroço provocado pela perseguição à Marieta não se deu conta de que precisava organizar o prato com o vinagre a faca e ir batendo o sangue enquanto cortava o pescoço da ave. A técnica é simples  corta-se a veia  e vai-se aparando o sangue na vasilha enquanto se bate o sangue com vinagre, para depois fazer o molho;   se não se fizer isto o sangue coagula e somente pode ser colocado na panela como um ingrediente sólido que é muito disputado pelas crianças.

- Desde pequenos somos educados para a selvageria, pensou Gerturdes.

Num ato de extrema improvisação ela abriu a porta da geladeira e enfiou Marieta lá dentro enquanto punha todas as coisas em ordem.

-Onde está Marieta, já consumou  a morte? Perguntou Padma voltando à cozinha.

- Não, preciso me organizar, já que vou ter fazer esta coisa sozinha.

- Cadê ela?

- Está na geladeira...

- Você trancou Marieta na geladeira?

- Somente enquanto eu me preparo...

- Mas isto é tortura...

_ Daqui a instantes ela já terá passado para a outra a vida , é somente uma pequena experiência  térmica em sua vida.

-Tire-a de lá agora.

Gertrudes sentindo a dor de Padma abriu a geladeira e viu que Marieta tinha defecado também lá. Gertrudes  deu um suspiro de ódio e colocou a galinha imediatamente  dentro do forno do fogão.

- Você continua torturando Marieta.

- Não chame esta galinha de Marieta

- Você não deve fazer esta coisa feia.

- Você não e a minha mãe.

Gertrudes  pegou  então a faca deu mais umas passadas no amolador.Olhou para Padma com os olhos fervendo.

- Os seus olhos estão cheios de ódio.

- É preciso certa dose de ódio, mesmo para matar uma galinha.

- Isto não tem uma boa energia.

- Esqueça , agora do que precisamos é energia calórica para cozinhar a Marieta...

- Ódio , não é bom.

- A morte é sempre traumática, mas como o que oferece depois é gostoso nós podemos vencer isto.

 - Se pode ser feliz sem isto.

-  sem uma galinha a cabidela não dá para ser feliz plenamente.

- Tudo depende de como queremos encarar  o universo.

 - Esqueça agora já enchi o meu coração de raiva, Marieta está condenada.


Padma disse suavemente:

- O ódio é um veneno sutil que destrói quem o fabrica e o guarda em suas prateleiras do coração. Uma simples desavença, um rancor simulado por trás de uma defesa de princípios vai se inoculando no dia a dia de modo imperceptível.

- Poupe o seu latim espiritualista, disse Gertrudes enquanto arrumava uma posição para começar o serviço.

- Quando anos depois vemos eclodirem  os efeitos destas  sementes de perturbação não será fácil lhes localizar a gênese. Parecerão que vieram do nada que apareceram em nossa frente por obra das parcas, criaturas mitológicas que tecem as nossas vidas. Às vezes nem nos damos conta de que guardamos alguns ódios em nossas prateleiras, às vezes até esquecemos que eles existiam. Somos por vezes  levados a crer que tudo já se desmanchou, mas não é bem assim que funcionam estas coisas. Uma vez que você construiu esta semente de energia mental, ela plantou-se em alguma parte dos jardins de sua alma e lá por qualquer motivo que lhe favoreça, até mesmo outros assuntos e de outras indisposições contra quaisquer outras pessoas,  serviram de alimento para aquela semente, e ela vai desabrochando e se conectando com outras,  que possuem elementos semelhantes, atraem-se umas às outras.

- Eu não acredito que por causa de uma galinha à cabidela eu esteja sendo condenada ao inferno.

- Por isso que perdoar,não é uma tarefa simplória da boca para fora. Jesus o divino mestre, já alertava para a necessidade de ir em busca daquelas pessoas com quem guardamos algum rancor e desmanchar isto.

- Eu não vou perdoar Marieta...

- O perdão envolve a ação de ir ao encontro da pessoa a quem dirigimos o nosso desafeto. No nosso mundo isto pode até parecer uma coisa de grande futilidade. Eu conheço algumas pessoas que acham tudo isso uma babaquice. O fato é que o ódio, o desamor, o egoísmo, criam pequenas bolhas que atrapalham o andamento da energia pessoal em direção ao divino e a liberdade de viver plenamente.

- Para a sua informação, querida Padma, Marieta é uma galinha, disse Gertrudes com ironia.

 - Antes que você diga que se pode viver no mundo somente às custas destes ódios, que esta é a regra, lembrando a máxima romana de estar preparado para guerra como condição necessária  para a paz,  ninguém vive em paz constantemente ameaçado pela guerra.

- Não é uma guerra. É uma receita de família, defendeu-se Gertrudes.

 - Hoje ao sair para ir ao mercado contigo para comprar Marieta vimos  as pessoas sendo inoculados pelo veneno do ódio coletivo;  ele se espalha numa rapidez tão grande que fica difícil  ficar imune à sua ação. Quando nos damos conta já entramos na roda de negatividades.

- Isto é idiotice...

- Eu tinha uma amiga que achava esta coisa de positividades uma besteira,  que o mundo era mal em essência e que as pessoas que não fossem nossas amigas eram todas imbecis e dignas de estarem nos quintos dos infernos.

- Esta amiga devo ser eu...

- O bom é que o tempo passará  revelando novas perspectivas e algumas mágoas irão se curar. A cura é algo unilateral, significando que cada pessoa é que cuida de sua sementeira de ódio, regando-a e adubando-a ou extraindo estas sementes  e destruindo-as.

- Galinha cabidela é um patrimônio cultural gastronômico, gritou Gertrudes.

- O ódio é pessoal, mesmo quando exercido dentro de uma coletividade e em nome dos mais sublimes ideais. O ódio é sempre o mesmo e a singeleza dos ideais não lhes modifica o lado tenebroso e as nefastas conseqüências. Há uma cultura do ódio como sendo a coisa mais chique e evoluída, discutem-se estratégias de guerra associadas às mais elementares tarefas sociais, em tudo as pessoas afiguram a possibilidade de uma batalha contra o mal representado pelo outro.

- Vá à merda!

- Esta energia alimenta e move a grande roda de catástrofes que assedia o nosso planeta. Antes que se diga que esse papo é espiritualista demais, assumo que é mesmo espiritualista, cristão,  mulçumano, judeu, budista e todas as crenças que dizem que  o amor pode vencer qualquer inconveniente.

- Pronto, chegou a hora, disse Gertrudes arrastando Marieta para o patíbulo culinário.

- O ódio não destrói somente a vida psíquica de uma pessoa, ele se materializa na vida física e no mundo ao redor. O ódio é sempre injustificável. Se pudéssemos ver como seriam  estas sementes de maldade veríamos elas primeiramente como uma bala de açúcar que esconde em suas camadas mais profundas o fel mais amargo. O ódio é revigorante a principio e somente mostra a sua potencia quando estes jardins de horrores começa  a exigir mais energia para se manterem.

- Padma, sai da minha frente agora...

- Por isso é um bom exercício fazer o que aconselhou Jesus: buscar sempre a reconciliação, não alimentar estruturas mentais que se prolongaram além da existência fisica paras os mundos mentais que somente as religiões e os estudos espiritualistas vislumbram.

- Eu não vou me reconciliar com Marieta.

- Admito que não é fácil, não odiar. É fácil ter inimigos. Difícil é amá-los, mas podemos insistir e inspirados em Jesus tentar fazer o melhor que pudermos.

- Meu Deus, tudo isto por causa de uma galinha.Os senhores sacerdotes não comem galinha à cabidela?  Arrematou Gertrudes.

Padma se retirou para a sala. Fez um silêncio de fim de mundo, mas o cacarejo de Marieta se continuou a ouvir. Padma teve a impressão de ouvir um choro baixinho vindo da cozinha.

Um comentário:

Soraia Diniz disse...

Fiquei fascinada na estória, apesar de pensar como Gertrudes