5 de jul. de 2011

O ÚLTIMO DIA DE SINHÁ ZANZA


Os últimos suspiros de Sinhá Zanza foram acompanhados por uma única lagartixa que estava muito próxima.  O clima era alegre; estava morno mesmo para um daqueles dias de inverno no qual o sol castiga como se fosse um verão pleno. Era um dia entre tantos outros, que haviam sido frios de doer na alma. Mas este havia amanhecido com uma luz forte, brilhante e calorenta. O céu estava de um azul bem clarinho com apenas algumas nuvens de algodão doce. Vocês sabem que este tipo de nuvem se espalha pelo céu de um jeito tão delicado que mais parecem terem sido feitos de açúcar.

Neste dia Sinhá Zanza acordou. Abriu os seus olhinhos delicados. Viu a maravilha daquela nova jornada de sua biografia. Levantou-se. Fez a sua higiene pessoal.  Ela tinha o hábito de esfregar muitas vezes uma mão na outra e passá-las pelo rosto, repetindo esta rotina uma dezena de vezes. Ela era muito asseada. Ela sempre fazia as suas refeições fora de casa; então, colocou uma echarpe, um óculos de proteção contra o vento e saiu rápida para a avenida.

Encontrou perto de sua casa umas guloseimas que estavam na oferta, entre doces e comidas mais condimentadas, e algumas até com certo tom de maturação que passava do ponto e exalavam um cheiro forte, mas Sinhá Zanza adorava sensações fortes. Foi um banquete matinal digno de uma princesa.
Ela era muito comunicativa e sempre freqüentava a casa de todos sem distinção, mesmo daqueles que a tratavam muito mal. Ela era uma boa alma. Gostava de estar à mesa. As crianças não faziam caso de sua presença e até não se importavam de repartirem com ela a sua comida. Os adultos, não, ficavam muito irritados. Mas Sinhá Zanza não tinha qualquer mágoa e algumas vezes até filava a bóia do gato ou do cãozinho. Eles não se importavam com ela. Depois do repasto, ela voltava ao seu ritual de limpeza esfregando as mãozinhas e novamente era expulsa daquela casa.

Algumas pessoas pensavam em tomar providências drásticas contra ela. Uma pessoa de sua classe deveria se recolher aos ambientes que lhe eram próprios e não perturbar a vida das pessoas normais.
Sinhá Zanzá pensava que se a vida já era uma coisa tão curta, algo tão pequeno, porque não iria compartilhar do alimento e do calor vital em meio a outras criaturas igualmente vivas.

Por isso fazia os seus caminhos de forma zigzagueante de tal sorte que aquilo que melhor lhe apetecesse fosse a sua parada para fazer uma boquinha. A sua filosofia se resumia a este ato magistral de comer e fazer a sua higiene pessoal. Nisto todos concordavam: ela era muito higiênica consigo mesma, apesar de não ter o pudor de compartilhar o prato de quem quer que fosse sem autorização.

Ela pensava que o alimento era a coisa mais sagrada que existia e que era o meio mais eficaz de unir duas almas. As pessoas, no entanto, consideravam nojenta esta sua forma filosófica de agir e a enxotavam sem cerimônia. Ela não reclamava;  se afastava um pouco, tentava novamente, até ser brutalmente empurrada para fora daquela casa.  As pessoas se perguntavam porque ela sempre voltava, burlava a segurança, aproveitava uma distração e entrava nos lares para compartilhar o grande mistério da vida.

Ela foi uma senhora muito vaidosa, que soube valorizar todos os seus instantes, sabia que a sua função era colocar no mundo outros seres vivos, e ela tinha feito isso de forma numerosa, deixando atrás de si uma linhagem que garantiu a sobrevivência de sua memória. Ela era  muito pouco cuidadosa com os seus filhos, mas isto não importava muito; ela pensava que cada qual deveria encontrar o seu próprio destino, que fossem à luta, a vida era algo para ser conquistado. A sua função de mãe limitou-se a lhes dar à luz, isto bastou ao seu lado materno.

Ela tinha algumas amigas com comportamentos parecidos que a compreendiam plenamente, mas eram também fechadas em seus próprios mundos. Assim quando ela morreu ninguém sentiu a sua falta. Os seus vizinhos comemoraram como se festejassem o recebimento de um grande prêmio de loteria.

No momento de sua morte estava apenas o vazio da sala. A luz vermelha do crepúsculo espalhava-se pelas paredes como um movimento frenético de pintura. Havia também uma aranha numa das quinas do teto observando os acontecimentos. Nos momentos finais, ela estava exausta de sua intensa vida, uma vida pequena para os padrões humanos. A última coisa que ela viu foi a língua gosmenta da lagartixa  faminta que a engoliu.

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