30 de dez. de 2024

NOITE BÊBADA

 

- “Ele me bateu porque me ama”, disse Lizabete.


A delegada olhou-a com desprezo, torceu os lábios em sinal de desaprovação. Lizabete estava sentada diante da autoridade policial com o corpo marcado por uma surra que levara, os olhos roxos, hematomas nos braços, um corte na coxa direita, os pés sujos de lama.


Na noite anterior Lizabete estava no Bar Flor da Noite, que ficava localizado na Rua da Areia, antiga via da cidade da Parahyba, hoje decadente. Era um lugar que servia de ponto da vida noturna suburbana, com vários bares e dormitórios dedicados a prostituição. Era quase meia-noite. Fazia frio. A lua em quarto mingante sentava-se sobre uma nuvem, e Lizabete estava sentada numa das mesas colocadas na calçada; olhava para um velho Edifício de Apartamentos que ficava num quarteirão próximo. Ela via algumas varandas iluminadas e pensava que poderia ser feliz, um dia, quem poderia saber, ter a sua família.


- “Dona Elizabete...”, a delegada sinalizou para que o escrivão escrevesse a ocorrência.


-”É somente Lizabete mesmo”, ela corrigiu.


- “Este é o seu nome social, cadê os seus documentos”, pediu a delegada.


-”Eu só tenho o meu corpo”, ela respondeu.


- “A sua carteira de identidade, lembra o número?”, a delegada exigiu.


- “Eu não tenho um número, só tenho o meu amor, nada mais…”, ela respondeu envergonhada.


Naquela noite Lizabete pediu um Martini com azeitona. O vento frio balançava os seus cabelos negros. Lizabete tinhas olhos castanhos, mas gostava de usar lentes de contato azuis, que a transformavam numa visão de uma deusa da noite. Ela gostava de pedir aquela bebida para sentir-se no convés de um navio de cruzeiro indo em direção a uma cidade da Europa. Na sua imaginação as pessoas que passavam eram como se fossem golfinhos, baleias e outras criaturas das profundezas oceânicas. Ela balançava o seu corpo suavemente imitando o movimento do mar.


- “Eu não lembro de outro nome, somente esse, Lizabete”, justificou.


- “E quantos anos a Senhora tem?” Perguntou a delegada.


- “Não sei, talvez 30”, respondeu.


- “A senhora tem registro de nascimento?”, continuou a delegada.


- “E isso importa? Eu posso lhe pedir um favor?”, pediu


A delegada assentiu com a cabeça. A escrivã olhou esperando que se começasse a ditar os termos da ocorrência. A sala era pintada de cor-de-rosa, as cadeiras eram cor-de-rosa, a mesa era cor-de-rosa, a porta era cor-de-rosa, a moldura do óculos da delegada era cor-de-rosa.


- "Por favor, não me chame de senhora, eu sou solteira", falou baixinho.


- “A senhorita percebe que está numa Delegacia de Polícia como vítima de uma agressão, e que o responsável já está sendo procurado?”, disse a delegada.


- “Mas eu não denunciei ninguém…”, ela disse


- “Não precisa, a senhorita é a vítima, e temos muitas imagens dos fatos, que estão circulando pelas redes sociais”, disse a delegada.


Imersa em seu devaneio marítimo, Lizabete imaginava a chegada no porto da cidade de Paris. Do mar ao longe avistava a Torre Eiffel com as suas luzes coloridas. Ela não conhecia a geografia do mundo, que era somente o mar e os seus sonhos. Um homem sentou-se a sua mesa trazendo-lhe para a calçada daquela rua de pavimentação tosca feita com pedras desiguais ainda no tempo que a cidade era uma província imperial. Ela sentiu a mão pesada dele em seu rosto.


- Você sabe quem é aquele homem?, perguntou a delegada


- Sei, ele é meu pai e meu amante, respondeu.


O cor-de-rosa do ambiente se turvou em tons de cinza. A delegada respirou fundo, a escrivã pediu para sair da sala.


Naquela noite Lizabete fora jogada ao chão. Levou chutes na cara, no barriga, nas pernas; foi cuspida não só pelo agressor, mas por outros que se juntaram ao ritual macabro. No chão desacordada teve o seu corpo molhado com cerveja e cachaça.


-Isso é para você aprender a ser homem, alguns gritavam ao redor dela.


Os vídeos do acontecimento se espalharam rapidamente pelas redes sociais. A polícia chegou, recolheu a vítima e levou-a para a Delegacia.


-”Eu vou mandar a senhora, desculpe, senhorita, para fazer o exame de corpo de delito”, disse a delegada, que solicitou a volta da escrivã.


Feitos os procedimentos burocráticos, Lizabete levantou-se trôpega e dolorida. Caminhou até a porta sozinha. Havia uma lágrima no rosto da escrivã.


- “Não machuque ele”, disse Lizabete para a delegada.


- “É a senhorita que está precisando de cuidados”, respondeu a autoridade.


- “Ele me bate, para me proteger de mim mesma”, argumentou Lizabete e saiu da sala.












3 de out. de 2024

O AZOUGUE

Roberval estava no seu quarto às duas horas da madrugada, escuro, numa cama de madeira com uma das pernas amarradas com um cordão de agave para não cair. Ele estava sentado sobre o colchão arrumado sobre um estrado de varas de cipó sabiá. Chama cipó sabiá porque são finas como as perninhas de um pássaro com esse nome. No quarto contíguo ao dele estava seu irmão, um outro homem, ou era, porque parecia que ele havia sido possuído por um azougue; dava para ouvir a sua respiração com um ronco forte como um porco em agonia de morte.

 Roberval acendeu um candeeiro a querosene com o pavio muito curto que jogava uma luz pálida e bruxuleante no ambiente. Os seus olhos passearam pelas paredes do quarto. As paredes eram brancas, tinham imagens, recortes retirados de revistas e não quadros emoldurados. Tinha um da santa de sua devoção, Nossa Senhora da Luz.

 Aqueles eram momentos de ansiedade aguardando o fim da madrugada e a chegada do sol. Ele estava sentado próximo a janela construída com pedaços irregulares de madeira e pelas brechas dava para ver a rua lá fora, com casas simples, calçamento de paralelepípedos irregulares. Um logradouro da periferia da cidade de Guarabira, que fica no estado da Paraíba, que ficou famosa na televisão com o aparecimento de luzes estranhas no céu.

 Fazia parte de minha atividade de pesquisa acadêmica ir até àquela cidade, pois eu estava fazendo um levantamento sobre os possíveis sítios arqueológicos indígenas da região. Numa de minhas viagens àquele lugar, eu mesmo vi uma dessas luzes; ela veio, parou sobre uma rua e depois chispou para o infinito. Coloquei aquilo na conta de uma alucinação.

 Era um lugar com muitas estórias. Noutra oportunidade soube de um homem que dizia, que havia visto uma criatura de aparência humana entrar numa rocha que ficava na serra onde está assentada uma imensa estátua de um frade chamado Damião, famoso por suas pregações. Dizem que esse religioso tinha poderes místicos; que calou para sempre os sapos que cantavam numa lagoa de uma cidade vizinha que estavam atrapalhando o seu sermão; não entendo nada disso, de modo que deixarei esse assunto por aqui.

 A nossa estória mistura-se com a crendice popular. Conversei com uma vendedora de tapioca, que é uma comida típica feita de massa de mandioca. A sua banca ficava na frente da igreja Matriz de Nossa Senhora da Luz. Ela contou-me que uma moça também contou que havia visto um homem entrar numa pedra, que tentou segui-lo, mas quando tocou a rocha a sua mão ficou queimada. O médico do posto de saúde disse que aquilo não era queimadura de fogo. Ela virou piada entre os amigos. ”Onde já se viu uma pessoa entrar numa pedra?”, caçoavam dela. Ela envergonhada mudou-se para um sítio distante de todos.

 Também havia o relato de um homem no mercado público da cidade, que pedia esmolas exibindo uma queimadura na perna dizendo que fora causada por uma das luzes que apareceram no céu.

 Eu escutei primeiramente essas estórias que estou contando aqui, numa barbearia, que fica na Praça da Cultura no centro da cidade. Fiquei tão impressionado, que em meus exercícios de andanças matinais, comecei a pesquisar e consegui chegar até a casa de Roberval, um homem transtornado, que fora vítima daqueles acontecimentos estranhos. Eu fiquei perturbado quando vi as marcas que havia nas paredes, desenhos queimados em baixo-relevo parecidos com as inscrições pré-históricas de uma pedra que existe em uma cidade próxima chamada Ingá.

 Algum tempo depois, em um banco da rodoviária municipal, o acaso me fez conhecer Roberval pessoalmente, enlouquecido, falando coisas desconexas olhando para o monte onde fica a estátua majestosa do Frei Damião. Daquele mosaico de falas desencontradas, remontei partes do quebra-cabeça; então, comecei a escrever esse relato como uma forma de libertar o meu espírito, após as últimas notícias que recebi de lá.

 Roberval era professor de uma escola pública. Era um homem de estatura mediana, pele branca, cabelos, lisos com uma franja penteada para o lado. O seu corpo era um pouco gordo, mas não obeso. Tinha alguns cabelos brancos apesar dos seus 37 anos. Usava um bigode fino que desenhava o lábio superior e faltava-lhe o dente canino esquerdo.  As mãos bem definidas, com as unhas roídas demonstrando a sua ansiedade.

 Juvenal, não o conheci, era mais jovem, cabelos grandes, louros, encaracolados, tinha 25 anos, gostava de andar descalço usando bermudas coloridas. Tinha uma barba rala abaixo do queixo, sobrancelhas muito grossas, olhos azuis, e uma pele amarelada, graças a genética das misturas que faziam nascer numa mesma família um verdadeiro caleidoscópio de cores e formas. Ele era mais inquieto e curioso que Roberval. Gostava de falar com as pessoas usando um bordão- “E aí, tudo tranquilo?” Era um cara com a aparência libertária de um pirata, que trabalhava como gari na limpeza urbana. As pessoas o chamavam de galego da limpeza.

 Voltando ao começo dessa estória, Roberval queria libertar o irmão do azougue que havia se apossado de seu corpo. Era algo estranho que se sucedeu após Juvenal ter ido até uma dessas pedras onde apareciam os seres. Dizem que ele ficou de tocaia, e quando um daqueles seres saiu da pedra, Juvenal aproveitou o momento, viu que a passagem havia ficado aberta, e entrou na pedra. Nunca mais foi o mesmo. As pessoas começaram a notar mudanças no seu comportamento. Ele começou bebendo muita cachaça, e somente depois de um tempo, é que Roberval percebeu que o irmão estava possuído pelos seres da pedra, o azougue.

 Uma das coisas mais difíceis de aceitar é a credulidade popular quando ela se instala em uma comunidade. Juvenal depois de ter saído da experiência da pedra começou a dar sinais de loucura e tinha já começado a ser rejeitado pelos vizinhos.

 Ficava dizendo que as mãos estavam queimando, é certo que algo estranho acontecia mesmo, eu conversei com alguns vizinhos que disseram que à noite as suas mãos pareciam brilhar como se fosse aqueles objetos fosforescentes. O fato é que certa vez o cachorro de Manuel, um vizinho, fora atropelado por um caminhão e ficara com as duas pernas esmagadas; a solução era sacrificar o animal para o desespero do dono, mas nesse remoinho apareceu Juvenal, que pegou o animal em seus braços e levou-o consigo; ninguém ousou reclamar da doidice. Somente Manuel ficou assim, tristonho; era o destino que o cãozinho terminasse o seu destino, mas para surpresa geral, na manhã seguinte, lá estava Xareu correndo pela rua com as pernas completamente saradas. Aquilo foi uma coisa que tirou Juvenal da condição de maluco para a condição de santo.

 No começo de sua santidade, ou poderes especiais, foram-lhe trazidos todo tipo de animal, gato, periquito, cavalo e até um porco. Tudo o que Juvenal tocava voltava a sua condição de saúde perfeita, mas não funcionava sempre, e não conseguia fazer o mesmo milagre com as pessoas, ao contrário, em muitos casos até piorava a situação, e foi isso que o tornou-o uma figura temida, ele não tinha mais o seu emprego e vivia dos cuidados de seu irmão Roberval.

 De quando em quando ele desaparecia pelo mato, e a conversa era de que ele estaria com as pessoas que moravam nas pedras. Nunca ninguém tinha visto aqueles seres, que eram mais uma fantasia, algo que entra para a imaginação popular.

Num desses desaparecimentos, os vizinhos começaram a notar que havia algo de diferente nas paredes de sua casa, e então ao entrarem e irem até o seu quarto encontraram as paredes cobertas com inscrições misteriosas.

 Então aconteceu algo inesperado, a filha de um dos vizinhos desapareceu. Foram feitas denúncias à polícia. As investigações apontaram um vazio. Vasculharam toda a vizinhança, as cidades vizinhas e nada foi encontrado.

 Uma semana depois a menina reapareceu, assim do nada, caminhando pela rua, como se nada tivesse acontecido. Ninguém suspeitou de Juvenal, pois o mesmo estava desaparecido fazia um mês. No entanto, quando a menina apresentou uma certa luminescência nos olhos, algo que não foi percebido por todos, mas por Roberval, que por conviver mais com Juvenal percebera que havia um certo brilho a mais em seus olhos. Poderia ser somente uma impressão de sua fantasia, mas agora diante daquela menina, Roberval suspeitou que estivesse acontecendo algo mais sério.

 Naquele rebuliço reapareceu Juvenal, disse-me uma outra pessoa com quem conversei. Juvenal estava mudado e não parecia mais aquele maluco, mas sim uma pessoa normal, organizada, e diferente daquele outro que todos conheciam. Retomou o seu emprego e nada mais fez para que desconfiassem de algo. Era visto tratando a todos muito bem, e algumas vezes sucedia de acontecerem, alguns eventos maravilhosos, um animal era curado de algo, ou uma pessoa, mas não era sempre, e nisso ele ganhou a fama de rezador, que ele assumiu sem cerimônia. Nesse seu novo papel, aquela menina lhe servia de ajudante, e às vezes, Roberval tinha a impressão de que havia algo, que eles falavam com os olhos, que não dava para ser compreendido por mais ninguém.

 Outra coisa que preciso mencionar, é que Roberval, ficou de tocaia quando o irmão saiu à noite em direção ao mato e o seguiu, e para sua surpresa viu quando ele se encontrou com outras pessoas, que estavam vindo de outros pontos da cidade, todos indo em direção a uma cachoeira muito conhecida pelos turistas que visitam a cidade. O mais estranho é que eles caminhavam pelo mato sem dificuldade alguma, nem com a natureza acidentada do terreno nem com a vegetação. Roberval disse-me que teve medo de continuar quando percebeu a presença da menina. O que era aquilo? Ficou quieto em sua posição até que o sol começasse a despontar, assim desceu para a estrada e pegou o caminho de volta junto com outros caminhantes comuns. Naquele dia ao chegar em casa encontrou-se com Juvenal que o saudou normalmente com um bom dia.

 Não havia motivo para preocupação, exceto com a noite. Juvenal não se comportava como uma pessoa comum, mas tinha o sono agitado, e numa daquelas noites Roberval escutou vozes vindo do quarto do irmão, que falava dormindo um emaranhado de vozes estranhas, algumas estridentes e sem sentido para ele. Noutras parecia escutar a voz do irmão pedindo socorro. E foi naquela noite que ele decidiu que era preciso libertar o irmão do azougue que o tinha possuído. Não sabia qual era a intenção daquela coisa que havia tomado o corpo de seu irmão. Não sabia explicar. Nem como haviam tantas pessoas de vários lugares. Estariam todas possuídas também?

 Nas minhas pesquisas soube que Roberval tinha ido procurar uma senhora rezadeira, que atendia as pessoas da cidade e redondezas fazia muitos anos. Fui conversar com aquela senhora. Chamava-se Selma, Dona Selma rezadeira. Ela contou-me que aconselhou Roberval a não mexer com aquilo, que era provável que os seres das pedras depois de um tempo deixassem Juvenal de lado, que vez ou outra isso acontecia com algumas pessoas, e que ele não se preocupasse com as atividades de rezador de Juvenal. Ela recomendou a Roberval a manter distância daquelas criaturas, pois elas viviam naquela região há muito mais tempo do que os primeiros habitantes do Brasil, que elas não eram daqui, mas que também não sabia dizer de onde eram, que já tinha encontrado com um deles, mas que não fora abduzida. Eles não fazem mal a ninguém, mas não os irrite.

 Bem, pelo visto Roberval não obedeceu aquele conselho e planejou um modo de descobrir de onde vinham e assim libertar o irmão. As pessoas tem a ilusão de que podem libertar os outros das coisas que desconhecem. É sempre muito arriscado fazer essas aventuras sem conhecer o terreno em que se pisa. Ele organizou-se para seguir a menina, pois isso daria menos na vista, assim ficou prestando atenção às movimentações dela. Enquanto isso, a fama de rezador milagroso se espalhou e todos os sábados à tarde durante 1 hora, Juvenal atendia algumas pessoas, que colhiam benefícios de sua habilidade. Em outros aspectos como já escrevi, Juvenal era uma pessoa comum. Somente Roberval sabia o que se passava na escuridão. Soube também que a menina também falava à noite, mas os pais diziam que aquilo era um mal de família

 Essa parte que vou narrar, quem me contou foi Dona Selma. Roberval seguiu a menina e viu que ela se adentrava no mato em direção a um paredão de pedra. Ela disse que não ia me revelar a localização do mesmo para minha própria segurança, pois como eu era muito curioso poderia querer ir até lá também. Roberval viu a menina entrar na pedra. Ele esfregou os olhos, não acreditou no que havia visto, mas não teve a coragem de se aproximar. Ao invés disso foi até ela contar o ocorrido. Dona Selma explicou-lhe que às vezes aqueles seres pegam pessoas do mundo humano para realizarem tarefas para eles, mas que tudo é feito com muito cuidado para não revelar o seu segredo, que ela achava que Juvenal havia sido uma exceção, que ele havia entrado lá de alguma maneira sem ser convidado, o que gerara aquela confusão toda no prelúdio desses acontecimentos. Diferente da menina, ou da família da menina, quem sabe.

 Contam que em um mês de fevereiro foram muitas luzes no céu, tanto que chamou a atenção de muitas pessoas que estudavam esses fenômenos. Naqueles dias sumiu Juvenal e a menina, primeiro Juvenal e depois a menina. Ora o que poderia ser aquilo que desafiava a lógica? Então Roberval decidiu que a solução para aquilo, era impedir que aquelas criaturas continuassem a se servir das pessoas. Era preciso libertar Juvenal e a cidade do Azougue.

 O plano era bem simples. Ele colocaria um remédio para dormir, algo forte, na comida de Juvenal, e quando ele adormecesse, iria conduzi-lo para um hospital psiquiátrico. Foi naquela noite que o irmão no quarto ao lado guinchava como um porco. Era o azougue lutando para manter o corpo de Juvenal em seu controle, mas o corpo restava adormecido, somente a energia do azougue é que gritava enquanto o espírito do outro repousava dentro daquela carne. Os grunhidos eram tão altos que acordaram a vizinhança que viera ficar de pé em frente a sua casa. Quando Roberval percebeu havia uma multidão em sua calçada.

 Alguns entraram para ver o que estava acontecendo e viram o corpo de Juvenal se retorcendo e dando espasmos na cama que o elevavam a tres palmos de altura, e tinha momentos em que parecia flutuar. Nisso, apareceu a menina, ela olhou duramente para Roberval, depois tocou a cabeça de Juvenal que se acalmou, colocou-se de pé e caiu. As pessoas acharam que, como a menina tinha sido a sua ajudante, podia ser que tivesse feito algum tipo de reza. Juvenal foi dado como morto pela equipe da emergência médica que fora chamada. Roberval foi inocentado de alguma culpa no acontecido, e na precariedade da polícia cientifica, ficou apenas a superfície dos fatos. Se tivessem feito um exame teriam encontrado a presença dos barbitúricos, que talvez não dessem para matar, mas nunca se sabe a resistência de cada organismo, nem tinha sido essa a intenção original.

 Aquela comunidade, no entanto, passou a tratar Roberval com muita dureza. Ele percebeu que haviam outras pessoas semelhantes a menina também morando ali. Roberval teve que sair de casa porque a mesma foi destruída misteriosamente. Ele preferiu não denunciar; ficara preso ao último olhar do irmão. Não era para aquilo ter acontecido. Roberval passou a andar pelas ruas e vez ou outra encontrava com pessoas que tinham aquele mesmo brilho nos olhos. Descobriu que aqueles seres estavam muito mais misturados entre nós do que poderíamos imaginar, e não somente ali.

 Certa vez antes de sair da cidade, recebi um recado de Dona Selma. Fui até a sua casa. Ela me recebeu bem. E foi dizendo sem cerimônia: “você remexeu em um bocado de coisa, não é mesmo? A curiosidade mata, conhece esse ditado?” Achei estranho que ela estivesse me dizendo aquilo. “Olhe, você deve ir embora, não olhe para trás, esqueça todas essas estórias; Roberval enlouqueceu porque ninguém deu ouvido a ele; além do que ficou a desconfiança de que a morte do irmão tivera alguma participação sua; essas coisas devem ficar no segredo”, acrescentou. Enquanto ela me falava aquelas coisas eu tive a impressão de que havia um brilho estranho em seus olhos.

 Quando estava indo embora, ao entrar no ônibus que me conduziria a cidade de João pessoa, onde pegaria um avião para retornar para minha casa, vi na face do motorista, uns olhos parecidos com o de uma cobra, foi um relance, somente um relance; ele sorriu.

 Mantive ainda contatos com algumas pessoas que iam a cidade para estudar o fenômeno das luzes, e conheci outras que estudavam os seres  que moravam nas pedras. Passou um tempo sem notícia de Roberval, apesar de que a sua face ainda me assustava quando a relembrava.

 Esta noite enquanto escrevo isso, recebo uma mensagem do barbeiro dando-me a notícia de que aparecera um outro rezador, que era Roberval, que havia melhorado de sua loucura, que voltara para o seu trabalho e agora continuava a fazer as mesmas coisas que o irmão fazia.

 Muitos que passam por ali conhecem os mistérios e as belezas da região, as suas estórias fantásticas. Eu prefiro que fiquem na categoria de estórias, assim nos protegemos da ira dessas coisas. Eu nunca as vi, mas as luzes, eu penso que sim, e os olhos do motorista.

 Hoje pela manhã ao descer no elevador de meu prédio, entrou uma moça, cabelos longos, louros. Ela deu-me bom dia. Eu estava distraído com o meu jornal na mão, então não lhe dei atenção. Ela me perguntou sobre uma notícia sobre as luzes misteriosas em Guarabira. Ao erguer o rosto vi os seus olhos de réptil por um instante. Eu fiquei gelado com a revelação. De fato, na página de trás a que estava lendo tinha escrito a manchete: “Luzes no céu”.

 Essa narrativa pode parecer muito fantasiosa, mas se você puder ir até lá, verificará pessoalmente… todo contador costuma aumentar um ponto, como se diz, mas nesse caso, é o contrário, eu omiti a maior parte dos detalhes para a segurança do leitor.

 João Pessoa, março de 2021

22 de jan. de 2022

A GORDA

  Nós vemos apenas o reflexo do mundo, e não tal qual é. Assim, a primeira luz que vem refletida de qualquer coisa fica guardada em nossa memória. A sua aparência primeira era de uma mulher gorda, gordíssima. Talvez essa minha fala possa parecer uma agressão, uma manifestação de preconceito, um ato de gordofobia. Mas o que se há de fazer? Ela era um balão, e era assim que os meninos da Rua Esperança a chamavam, era o seu segundo nome.

Ela impunha respeito com o seu corpanzil de dinossauro - desculpem-me a piada de mau gosto. Ela era tão avantajada que até o cachorro pitbull raivoso e assassino do policial aposentado que morava na casa da esquina, e que quando desfilava pelas ruas, todos se trancavam dentro de casa - não vou aqui falar dele, que era um rabugento que não merece nem mesmo as minhas lorotas deselegantes - pois até o seu monstro canino amofinava diante dela. Ela era a expressão do poder de alguma deusa misteriosa que neutralizava o mal, sendo secretamente admirada por causa disso.

A essa altura, vocês devem estar me perguntando quem era aquela criatura, que como já disse era obesa, e se chamava Mariane. Descobri o seu nome por acaso, porque também compro pão na Padaria de Genésio, e ela também foi comprar o seu pão e pediu para guardar a conta no caderninho. Vi quando Bernadete, que fica no caixa anotou o nome dela: Mariane. Assim soube de Mariane. “!Meu deus, ela tinha um nome”- pensei.

Ela percebeu que eu havia lido o seu nome, e pela primeira vez eu olhei o seu rosto. Ela tinha os olhos verdes, da cor das folhas novas do pé de figueira. Os cabelos eram de um tom castanho-claro que brilhavam quando o sol refletia neles. o seu nariz era pequeno e um pouco arrebitado, e a boca era como um arco egípcio de atirar flechas. Olhando o seu rosto, de verdade, no fundo dos olhos, eu vi aquela mulher, Mariane, e desde aquele dia ficava esperando o momento em que ela apareceria para comprar pão. Ela era a rainha do pão; comprava uma dúzia somente para si mesma, já que morava sozinha em um casarão velho que ficava no final da rua encostada com a cerca da Reserva Florestal. 

Assim a gorda, deixou de ser a gorda e se tornou Mariane, e eu gostava de olhar no fundo de seus olhos…

Certo dia, ela não foi comprar o pão de cada dia. Não achei nenhuma dificuldade em deixar passar o fato, mas quando ela sumiu por uma semana então comecei a ficar angustiado. Ninguém na rua ficou preocupado com ela, somente eu, que ficava olhando para a sua casa para ver se acontecia alguma coisa. Convenci-me de que deveria ir até lá para verificar se não estaria acontecendo alguma coisa- inspirei-me num desses seriados policiais - quem sabe não teria ocorrido alguma coisa. Antes, porem, eu comentei com as pessoas da vizinhança sobre o sumiço dela. Ninguém se importou. Tem pessoas assim que não parecem fazer falta a paisagem, mesmo que sejam extremamente gordas. 

Numa sexta-feira, dia de lua nova, esperei que caísse o silêncio da noite, e que o movimento da rua fosse desaparecendo. Antes porém dei um jeito de quebrar a lâmpada de iluminação noturna do poste que ficava em frente a casa de Mariane. Eu esperei que tocasse meia-noite no sino da igreja. Ainda tem esse detalhe de minha rua, que tem uma igreja pequenina, na qual o padre Fernando teve a idéia de colocar um relógio que bate as horas; é algo sem sentido, em um tempo no qual todas as coisas são digitais; os meninos não brincam mais na calçada e sim com os videogames; nem fazem aventuras de verdade, mas transportam-se para dentro do mundo das series ficcionais transmitidas pela internet. No entanto essa era minha rua. 

Voltemos ao relógio da igreja. Com a décima segunda badalada eu fui pelos recantos mais escuros, Vestindo uma calça com motivos de camuflagem na selva, uma camisa verde-oliva para me sentir como um general de alguma guerra fora do tempo, e calçando botas; não eram botas de verdade, mas um tênis cano longo de cor preta, e um boné azul. O fardamento de minha incursão guerreira a casa de Mariane não estava dentro dos padrões consagrados pelo imaginário popular, mas foi o que eu arranjei.

Eu fui caminhando na intenção de que estava invisível, mas percebi quando Dona Maroca, a nossa repórter geral para assuntos da vida alheia estava de prontidão em sua janela, mas acho que ela não me viu. Ela já tinha quase 80 anos e  a sua visão não era mais tão aguçada quanto antes. Fiquei imóvel esperando que ela trancasse a sua janela. Com a batida do relógio anunciando uma da manhã, finalmente, ela apagou as luzes de sua casa. Acho que ela deve ter pensado que eu  era somente uma visagem. 

Prossegui com a minha aventura.  Empurrei o portão, que estava sem ferrolho. Esgueirei-me pelo jardim empunhando a minha pequena lanterna de led que havia comprado na banca do chinês da feira que vende todas essas quinquilharias importadas. É preciso ilustrar que os muros da casa da gorda eram altos e ninguém tinha a menor curiosidade do que havia lá dentro, nem mesmo eu, mas quando me vi dentro de seu jardim assustei-me com os canteiros de flores que estavam podados, sem a presença de matos inoportunos, e havia até uma pequena fonte com um peixinho jogando água pela boca.

A casa tinha paredes com partes do reboco caído, revelando tijolos vermelhos maciços. O piso arranhado pelo movimento da mobília. A porta frontal com 3 metros de altura com o seu verniz escuro descascando tinha uma argola de bronze polido do tamanho de minha mão que deveria servir de campainha.

Imaginei como era que uma pessoa gorda teria a coragem, ou mesmo a disposição para limpar uma casa. Os serviços domésticos são muito chatos. Todos sabem disso. Mas a casa dela não tinha teias de aranha, nem areia nos recantos, nem poeira sobre a mobília, mesmo com uma semana após o seu desaparecimento da padaria. 

Passou-me pela cabeça a ideia de que ela teria mudado de padaria, talvez percebendo as olhadas profundas que havia dado em seus olhos - que assim fosse - essa era a única explicação para o estado de arrumação da casa. 

Eu então resolvi fazer uma volta de averiguação ao redor do imóvel, para assegurar-me de que estava tudo certo.  A casa ficava no meio do terreno e não havia nada fora do lugar. 

Quando ia passando pelo quintal percebi que havia uma pequena porta no muro que fazia fronteira com a reserva florestal. Era um portão camuflado com  algumas plantas trepadeiras de modo que, se não se olhasse com atenção, pensaria-se que seria somente  um gradil para a planta. Mas era um portão. 

Ainda fui até ele, mas lembrei-me de manter o foco, que era entrar na casa. A porta da cozinha estava somente encostada de modo que não tive problemas para entrar no lugar. Usei a luz débil da lanterna e fui me sorrateiramente deslizando para ver se havia alguma presença na casa. Não havia ninguém, exceto que sentia que a casa estava sendo vigiada por alguma coisa. Nisso pensei que talvez ela tivesse colocado câmeras de segurança. Mas não isso era impossível, a gorda não era uma pessoa que aparentasse ter recursos  para isso. Era somente uma gorda, muito gorda que apesar de imensa era uma nulidade existencial. 

Havia a sensação de que algo estava me observando. Eu podia deduzir devido ao estado de arrumação das coisas. A casa não era um lugar imundo com restos de comida jogados no chão, paredes sujas de gordura, ratos correndo pelos cantos, teias de aranha e baratas voadoras. Não, a casa era bonita como se fosse de uma princesa magrinha e linda.

No entendimento de muitas pessoas as princesas devem ser todas esbeltas. 


Fui em cada cômodo. Na sala havia um sofá de tamanho normal, uma TV antiga daquelas de válvula, um radio também de válvula, cortinas bordadas com motivos florais, nas paredes alguns quadros de paisagens marítimas. Um agradável cheiro de alecrim. O quarto da gorda me surpreendeu. As paredes eram rosa e havia um mobile com borboletas pendurados no teto, a janela estava coberta com uma cortina de véu muito fino que dava para ver um canteiro de flores do jardim, mas a sua cama era pequena, e tinha o tamanho adequado para uma menina de 14 anos. Resumindo, o quarto da gorda parecia ser um quarto de boneca. Pensei - “Não, aquele não deveria ser o quarto da gorda”. Nem o quarto, nem a cozinha, nem qualquer daqueles cômodos da casa pareciam pertencer àquela personagem que todos na rua tratavam com indiferença. 


A única coisa que sabíamos dela é que, segundo se contava, ela morava ali desde pequena, e quase não saía de casa. Tanto é assim que os mais velhos não lembravam dela quando criança, mas sabiam que ela estava lá. Os seus pais, também se via pouco, e saiam muito a negócios de modo que a casa ficava aos cuidados da menina, quando pode ficar sozinha em casa; antes sabia-se de uma babá igualmente obesa. Aliás os seus pais eram também avantajados em tamanho. Diziam bom dia, boa tarde e boa noite, e não conversavam sobre a sua vida. 


Sim, mas continuando o relato de minha investigação - se a gorda não estava ali, se a casa não parecia adequada para a vida de uma pessoa obesa, onde estaria aquela figura? Para onde teria ido? O que seria aquilo?  Estava absorto com os meus pensamentos quando percebi que alguma coisa se movimentava no quintal. O meu sangue gelou, arrepiei-me, o coração disparou numa taquicardia, pois não tinha como me defender de algum ataque, e nem mesmo um pedaço de pau havia levado comigo.


Ainda estava paralisado quando entrou um vulto, que percebeu a minha presença. Houve um momento de silencio. “Você tem noticia de Mariane?” - foi o que eu perguntei. Houve um silencio daqueles de filme de terror. Naquele instante eu preferia que estivesse de fato dentro de um filme da TV em que sempre aparece uma ajuda externa para salvar o herói da situação difícil. No caso, eu seria o herói, óbvio.


Então arremeti mais uma fala no estilo: “Percebi que a gorda não foi mais comprar  pão e fiquei preocupado com a conta”. Uma desculpa esfarrapada que não convenceria  ninguém; cobrar uma conta de madrugada com uma lanterninha de Led. A sociedade tem o hábito de criminalizar as pessoas que estão fora de seu padrão. O vulto não disse nada afastou-se para o escuro do quintal. Eu fiquei ali congelado com medo até do movimento do vento nas árvores. 


Esperei assim pelos primeiros raios de sol. À medida que o sol foi clareando a aparência da casa foi se revelando 

semelhante às minhas primeiras expectativas, havia sujeira, os móveis tinham uma dimensão proporcional ao tamanho da gorda; tudo fedia a restos de comida e gordura, e dava para ouvir os guinchos dos ratos correndo pelas vigas do teto. Com a manhã estabelecida saí pela porta da frente que também estava somente encostada e fui para casa com  a alma petrificada. Adormeci em minha cama como  se tivesse chegado de uma guerra  nuclear. 


Certo dia, algumas semanas depois da minha aventura na casa da gorda, eu tinha ido até a padaria. Mariane estava saindo com o seu saco de pães, olhou no fundo dos meus olhos e sorriu.




8 de jan. de 2022

A LIVRARIA DA LUA

 Hoje eu recebi a ligação de uma voz feminina me convidando para uma conversa. Disse-me que se chamava Luna e que os nossos encontros anteriores foram marcados por acontecimentos que provavelmente ficaram guardados na minha memória como se fossem sonhos ruins. Vinha vivendo a agonia de acordar de manhã e lembrar de coisas estranhas que aconteceram no dia anterior, mas que eu também tinha a certeza de que aquilo não fora real. Uma coisa é a realidade, outra é a quimera. Eu tinha a sensação de que aquelas coisas estavam em luta dentro de mim. Isso tinha a ver com a presença daquela mulher nas minhas lembranças. Propus tomarmos um café. Assim eu iria encontrar com a personagem de meus pesadelos. 

Marquei na Livraria do Café, que fica no Rua Augusto dos Anjos no centro da cidade antiga. Lá é um ponto de encontro de artistas e intelectuais, e segundo o meu entendimento, é um lugar protegido contra as emanações  negativas que andavam correndo sobre a cidade de João Pessoa. É uma sala grande subdividida por balcões de livros ,tem estantes nas paredes, parece com um mergulho em um mar de estórias. Em um dos cantos da sala há um balcão de um café com um mostruário de salgados e doces, ao fundo em outro balcão uma máquina de café café expresso. Há três mesas com quatro cadeiras cada, para os clientes. Marcamos para três da tarde. Lá era um ambiente onde poderíamos conversar livremente e protegidos.

Nada mais propicio para lidar com uma situação próxima da ficção do que uma livraria.  Não estava cedendo para a tese da alucinação, mas é que coisas que tem este tipo de realidade são difíceis de serem colocadas no dia das pessoas a não ser através dos jogos eletrônicos e dos filmes fantásticos; a gente nunca dá com a possibilidade de que isto possa existir. 

Cheguei no horário combinado. Pedi um café forte duplo.Da posição em que estava dava para ver através dos livros expostos na vitrina a movimentação das pessoas que passavam pelo Beco.

“Olá, tudo bem contigo?” - Disse Luna sentando-se. 

Ela vestia uma calça jeans elástica, de cor verde, que lhe fazia o contornos das pernas, uma camiseta preta com flores bordadas em amarelo. O cabelo cortados formando uma pequena franja sobre a testa; o volume do cabelo mas denso no alto fazia uma transição brusca na linha da orelha fazendo a forma de um arco na nuca que ficava completamente à vista revelando a tatuagem de uma carranca. As orelhas finas e um pouco pontuda no alto.Ela usava um brinco de ouro que tinha a imagem de uma árvore da vida, dessas que aparecem nas revistas de palavras cruzadas. Era um visual diferente do que estava na minha memória.

“Estou avaliando se não é um erro, mas…” - disse-me segurando a minha mão.

Ela pensava que talvez tivesse sido um erro, porque era algo que não poderia ser desfeito, transformado-o  numa lembrança distante. Ali era alguém que estava saindo do mundo do inverossímil e se encontrando em carne e osso comigo.

Mas ela estava errada sobre mim. Eu entenderia alguma coisa do que estava acontecendo. Estava preocupados com as coincidências, com a sensação de estar em dois mundos. Pedi mais um café duplo dessa vez extra-forte. 

Ela disse-me que uma conversa aberta não seria aceitável, mas que cederia algumas informações, apesar de eu não ter credencial, mas que poderia ajudar de alguma forma.

“Posso saber como?” - Perguntei.

“Você poderia ser um observador de algumas coisas estranhas que estão ocorrendo em João Pessoa”

“Um espião?”

“Algo assim”

A livraria era um lugar adequado, para um papo descontraído, um pouco imaginativo, era o disfarce perfeito. Os clientes não se assustavam com a nossa conversa, ao contrário, eram atraídos pela figura exótica de Luna. Eles olhavam-na despindo-a com os seus olhares. 

Posso dizer que ela estava muito atraente. Eu tinha comigo que a conversa era um teste, relembrando  que eu tinha estado em lugares e visto coisas que são invisíveis para a maioria dos mortais, e que até ali, colava a idéia de  uma alucinação, mas agora não, ela iria  me explicar tudo. 

Ela falava com desenvoltura gesticulando os braços como se o espaço fosse uma substancia e ela moldasse nele as palavras, chamando a atenção dos freqüentadores, alguns homens, que pensavam que ela fosse apenas mais uma Lolita esperando pelo seu romancista. Porém, eles não sabiam o que ela realmente era; as aparências enganam. Ali Luna não se parecia com a mulher eu que vira em ação. 

Vi quando um amigo se aproximou com cuidado para não criar a idéia de que estava flertando com Luna, acho queria que tudo parecesse casual.

Ali não daria para continuar a nossa conversa, fosse o que fosse,  e ainda mais com as importunações dos amigos, propus que fôssemos para outro lugar. 

“Gente, dá licença que eu estou conversando com o meu amigo” - ela protestou.

Ela falou que estava na hora de colocar essa cultura patriarcal e machista na lata do lixo, e os “cidadãos de bem” lentamente foram se recolhendo.

A nossa conversa continuou em paz.  Ela me explicou as coisas que estavam acontecendo na cidade e questionou se eu toparia conhecer um pouco mais, que eu tinha passado por algumas experiências.

“Teve um momento em que pensei que estava ficando louco, perdendo a lucidez”

“A nossa organização cuida de coisas de segurança em setores fantásticos”

“Qual o nome dela?”

“Não importa”

“Vou chama-la de…”

Luna repreendeu-me com o olhar. Depois saímos e fomos caminhando pela Praça do Ponto de Cem Réis. Ela disse-me que mandaria o endereço de nosso próximo encontro, entrou em um táxi e foi embora, e dessa vez eu sabia que não era um sonho.


CONTOS DA SEQUÊNCIA

1- ZUMBIS EM JAMPA

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2 - O PORTAL DA PRAÇA DA PEDRA

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3-A LIVRARIA DA LUA

https://avizinhadeagatha.blogspot.com/2022/01/a-livraria-da-lua.html

6 de jan. de 2022

O PORTAL DA PRAÇA DA PEDRA

 Eu estava sentado em um banco na Praça da Pedra, que é um lugar místico - uma pedra que fica no meio de uma praça. Uma pedra? - Isso, uma pedra não tão grande como um obelisco. Um obelisco anão - Muito estranho. As pessoas que passam acham inusitado aquela monólito ali.

Dizem que ela tem ligações com o outro mundo, por causa da proximidade do mais antigo cemitério da cidade. 

Quando você está em João Pessoa, você pode estar em uma Praça chamada Pavilhão do Chá, da qual parte a  Rua da República, uma ladeira íngreme que levará você para a Praça da Pedra. Faça esse caminho quando o sol estiver a poucos graus de atingir a linha do poente. Pois é lá que se passaram os fatos que vou contar. Poderia ser mais uma lenda urbana de Jampa, mas aconteceram comigo naquele dia.  

Era próximo das seis horas da tarde, de um mês de inverno e a superlua cheia estava bela  em sua chegada. As pessoas em seus caminhos de volta para as suas casas, e boêmios começando a lida da luxúria noturna, e tantas coisas mais - eu tinha ido ali para comprar uma peça para o meu automóvel, uma Brasília amarela, antiga, cujas peças somente se encontrariam em desmanches de carros antigos do Distrito Mecânico, que ainda é um lugar que agrega oficinas mecânicas e ferros-velhos. 

De volta do Distrito Mecânico passei pela frente do cemitério do Senhor da Boa Sentença, e no cansaço,  sem ter conseguido comprar a peça do automóvel, sentei-me na Praça da Pedra, o meu sapato incomodava demais. 

Eu estava absorto contemplando o fim do dia naquela hora tão especial escutando o radio de pilha do pipoqueiro que estava na calçada, tocando a Ave Maria, quando Eduardo e Luna se aproximaram da pedra. Ficaram inquietos quando me viram, mas tentaram dissimular que me conheciam. Eu lhes lembrei que os conhecia de um acidente no qual estivemos todos envolvidos e no qual havia sucedido coisas estranhas. 

 “Prefiro viver no presente”- disse Luna

“O que estão fazendo aqui?” - perguntei. 

Luna respondeu que estavam esperando um amigo.

Perguntei se era alguém do bairro, pois conhecia algumas pessoas, mas eles disseram que não, que era algo sem importância.

Eles estavam muito ansiosos e se afastaram dando a impressão de que iam embora, mas eu percebi quando se esconderam próximo ao Sebo do Coronel, uma antiga livraria de livros usados, que ficava na Rua da República.

Eu decidi me afastar, mas mantendo a vigilância  sobre os dois. Vi quando eles se aproximaram da pedra, fizeram um meio giro ao redor da mesma e desapareceram.

Então eu me aproximei, e fiz o mesmo giro e para minha surpresa estava na mesma praça, só que não existiam pessoas nas ruas, o horário era o mesmo, mas a cor do mundo era de um sombrio azul profundo.

Procurei pelos dois, e os vi descendo a calçada em direção as ruínas da antiga Fabrica Matarazzo. Eles percebem a minha presença.

“O que está acontecendo? - perguntei.

“Acho que o que aconteceu contigo naquele acidente de ônibus na Avenida Miguel Couto te habilitou a passar pelos portais de Jampa” - Explicou Eduardo.

“Eu sabia que não tinha sido alucinação”

“Essa é uma situação muito incomum” - completou Luna.

Eles explicaram um pouco o que estava acontecendo.

Vai parecer estranho o que vou contar para vocês, mas a tarefa deles era pegar uma pedra especial, que estava sendo usada pelas criaturas da cidade dos monstros para abrir os portais de Jampa e “zumbizar” as pessoas.

“Zumbizar?”

“Transformar em zumbis” - explicou Luna.

“Não ria, é sério!” - completou Eduardo - “e o  plano deles é controlar os portais de Jampa para invadir a cidade e atacar as pessoas, retirando-lhes as almas, transformando-as em  armas capazes de qualquer perversidade. A nossa missão é capturar essa objeto”

Achei aquela estória muito estranha. Disse que estava disposto a ajudar, mas eles lembraram que era uma tarefa difícil, pois o lugar era guardado por criaturas assombrosas…

“Sim, e o que mais?” -  Eu debochei.

Eles me pediram que ficasse na retaguarda, na calçada, enquanto que eles entrariam no prédio.

A rua estava vazia com uma luminosidade cinza e um cheiro de podre que vinha do Rio Sanhauá que ficava logo abaixo. Eu sabia que o rio estava poluído, mas o cheiro transcendia a realidade, o vento era frio com lufadas cortantes.

O portão tinha o desenho de uma letra U invertida na vertical, que terminava numa espiral. 

Pensei que poderia ficar ao menos pelo lado de dentro, e como não havia nada à vista, também achei que Eduardo e Luna haviam me enganado com aquelas estórias fantásticas. 

Olhei para para todos os lados e não os vi, então já que estava ali aproveitei para caminhar um pouco pelo espaço, estava escuro, mas a luz da lua cheia deixava o lugar explorável.

Caminhei entre as sucatas. Era um corredor curto, sem perigos, havia uma  chance mínima de acontecerem complicações. Essa era minha aposta.

Pensei comigo que não iria abusar da sorte se desse somente uma espiada no lugar.

Então fui surpreendido por um golpe de espada aos meus pés. Escutei o tilintar do aço no chão. Fiquei paralisado. Vi um animal semelhante semelhante a uma naja com três cabeças, todas cortadas, e cerca de 2 metros de comprimento.

Apareceu Luna e fez um gesto pedindo que eu fizesse silencio. Eu fiz um gesto com os ombros dizendo que não estava entendendo o que estava acontecendo. 

“É um filhote” - Ela sussurrou. 

Eduardo apareceu também portando uma espada e explicou que a mãe daquele réptil estranho deveria estar por ali, e que agora eu teria que ir com eles porque a missão não poderia ser cancelada.

Entramos em um salão com teto triangular com 50 metros de altura, onde deveria ter sido o galpão das máquinas pesadas. Era de metal, já com muita ferrugem, aparentava ser sólida apesar dos seu século de abandono. Eu pensei que talvez aquele lugar pudesse ser um centro cultural. 

Eles me pediram para andar agachado e em silencio. Dentro do galpão a luz era pouca, mas percebia-se que havia um mezanino na parte alta, onde haviam criaturas se movendo, uma luz amarela bruxuleante produzida por candeeiros a querosene. Eduardo indicou uma parede do mezanino para ser escalado por Luna; ela esgueirou-se naquela direção e virou uma sombra.

Eduardo mandou-me segui-lo, mas afundei o meu pé em um buraco e fiquei preso. Percebi que ele deu um suspiro profundo.  Voltou e ajudou-me a sair. Nisso quando íamos subindo por uma escada em espiral  percebi que uma caranguejeira cabeluda pulou nas costas dele. Eu peguei-a com cuidado, logo mais sabia como fazer isso, pois já tinha criado algumas como animal de estimação. Ela não era venenosa, mas notei que Eduardo ficou assustado; achei que ele não amava os aracnídeos.  Já  estávamos próximos ao lugar, entramos numa passarela suspensa que nos levava a uma porta.

No salão não havia mais ninguém. Luna já estava lá e disse que o lugar estava limpo. As paredes estavam pintadas de cinza com uma textura que dava a aparência de algo escorrendo do teto, o cheiro era cabelo queimado.

Eles falaram que não estava ali, mas que era um lugar próximo. Eu fiquei admirando a paisagem lá do alto, o pátio da antiga fábrica. Era intrigante terem construído um salão grande suspenso sobre uma grande estrutura que parecia ter sido um dos fornos da antiga fábrica. Como tudo se parecia com um sonho, eu não tinha nem um pouco de medo.

Eles vasculharam o salão em busca de algo. Eu não sabia o que era. Sentei-me em um banco e olhando para a parede atrás do púlpito tive a impressão de ver um pequeno brilho, que a luz da lua fez refletir. Mostrei a eles, que louvaram o meu achado. Era um olho mágico que fora acomodado na parede. Assim, descobrimos poderíamos estar sendo observados, e nesta hora senti um arrepio. Também percebi que o armário possuía rodinhas quase imperceptíveis também reveladas pela lua. O armário era uma porta camuflada.

A outra sala era escura, sem nenhuma brecha para ver o céu, se parecia com uma sala de apoio de um templo; em suas paredes estavam desenhados olhos grandes; nas quinas superiores, nos quatro cantos, estátuas de pequenas criaturas com olhos negros sem narizes e uma boca minúscula. No centro do teto havia o desenho de um mapa da cidade de João Pessoa onde haviam marcados alguns lugares com um X amarelo, notei que entre estes lugares estavam o fim do viaduto da Miguel Couto, a Praça da Pedra e a Fabrica Matarazzo.

“O que são estes X marcados no mapa da cidade?”

“São os portais; tem vários” - Disse Eduardo.

Não havia uma porta de saída dali. Parecia uma armadilha mortal.

Luna percebeu uma pequena alteração no assoalho e com perícia conseguiu destravar o mecanismo e abrir uma passagem.  Uma luz bruxuleante de cor amarela-alaranjada escapou pelas frestas, dava a impressão de um fogo, algo queimando.

Eles perceberam a minha surpresa, então me disseram que a partir dali as regras do mundo seriam outras, parecidas com aquelas que vivenciara no viaduto, onde o portal fora aberto, e eles conseguiram fecha-lo por muita sorte.

Agora eles estavam conscientemente passando para aquele outro lugar, que funcionava, mais ou menos assim: Jampa era um nível mágico da cidade de João Pessoa, mas ali iríamos entrar no nível sombrio da cidade de Jampa, que era o lugar de onde vinham os monstros. Disseram-me que teria que ir junto, pois o portal da Praça da Pedra já se fechara e agora eles teriam que ir por outra saída, que eles sabiam exatamente onde ficava.

“Isto não é  um filme, não é um sonho. E você será útil como isca.” - Disse-me Luna.

Desejei que fosse um sonho.

Quando passamos pela porta, demos com um alpendre suspenso no espaço no qual havia uma passagem em duplo arco verde a 15 metros de altura, ladeada por figuras de monstros montados com peças  de sucata e entre eles cortinas feitas de pequenos ossos humanos.

Chegamos a um corredor longo com curvas e ao final uma porta com fechadura embaixo rente ao chão. Luna e Eduardo debruçaram para examinar o que parecia ser uma fechadura moderna com chave comum. Iniciamos uma busca pela chave. Não havia nada. Olharam para mim esperando que a sorte de principiante valesse a pena naquela instante.

“A porta pode estar aberta” - foi a minha sugestão idiota.

Era uma sugestão idiota mesmo, se depois de tanta fantasmagoria a porta estivesse aberta. Eduardo zombou de mim. Luna me olhou com pena. 

Eu realmente não estava respeitando a dimensão dos acontecimentos. Então para completar a minha imbecilidade resolvi empurrar a porta, nem usei de muita força, ela cedeu rangendo, estava aberta para a surpresa geral.

Eduardo e Luna disseram que poderia ser uma armadilha, logo mais uma eventualidade assim não se encaixaria neste tipo de acontecimento, pois até o momento não havia aparecido nenhum tipo de obstáculo e tudo caminhava bem, apesar do lugar ser sombrio e estranho.

Nunca imaginei que aquela fabrica abandonada contivesse esses mistérios. 

“Bem, estou novamente tendo delírios e amanhã quando acordar tudo isto será apenas a recordação de um pesadelo.” - Pensei comigo.

“Não é um sonho.” - Disse-me Luna adivinhando os meus pensamentos.

Empurramos a porta e entramos naquele lugar amplo, do tamanho de um Ginásio de Esportes. No meio estava um pequeno altar e em cima dele um objeto com um brilho muito peculiar.

Luna me disse que se tratava de um material chamado pedra da lua. Era isto que deveríamos pegar e fugir. 

Ao ver as criaturas que habitavam aquele lugar, senti o horror dentro de minha alma, com a evocação de todos os seres diabólicos que já habitaram os meus pesadelos.  A minha opção era fugir sem olhar para trás. Fui me esquivando devagarinho em direção a porta de entrada. Fui de “fininho” como se diz. Luna e Eduardo tomaram o rumo deles, nem olhei. 

Tentei empurrar a porta, mas estava travada. Disse comigo mesmo um palavrão, que como foi algo interior, não preciso descrever aqui para não escandalizar algum leitor. Então forcei a porta, ela cedeu fazendo um rangido. 

Ninguém me percebeu, abri a porta e me arrastei para dentro da outra sala. Ajoelhei-me encolhendo o corpo depois que ouvi um som estridente. Enquanto isso, o pau comia na caverna.

“Meu deus , por que fui me meter nisso?” -  Disse arrependido de ter seguido aqueles dois.

Naquele momento, tudo aquilo que acontecera no viaduto, que eu estava atribuindo a um delírio, ou a um pesadelo, estava acontecendo novamente. 

De repente, entraram pela porta Eduardo e Luna. Ficaram surpresos em me ver bem e disseram para irmos rápido porque eles tiveram que lutar com algumas coisas lá, das quais esqueci os nomes, e provavelmente elas estariam vindo atrás de nós. 

Fizemos o caminho de volta , mas quando chegamos na passarela aqueles monstrinhos de sucata estavam vivos. Eduardo disse-me que precisamos passar ligeiro porque a aproximação das coisas lá de baixo iam mudando e dando vida àqueles bestas de metal. Corremos. Já perto da saída Luna sugeriu que fôssemos pela corda que ela usou para fazer a escalada.

“Eu descer? Jamais”

Eles desceram. Quando vi aquelas coisa vindo em minha direção, agarrei-me à corda e desci ralando a minha mão, o coração a mil.

Uma vez no chão sabia o caminho a correr. Uma coisa era lutar com algo visível, outra era enfrentar coisas invisíveis, ou fora do padrão do meu paradigma civilizado.

Cheguei ao portão de entrada primeiro, fui abrindo no solavanco, corri até a Praça da Pedra, mas não sabia como fazer para passar de volta para a cidade normal. Eduardo e Luna chegaram, não se incomodaram comigo, pediram que os seguisse. Fui com eles até o coreto da Praça do Pavilhão do Chá. Luna retirou um objeto de sua sacola e esperou que ele acendesse,  então passamos de volta para a cidade normal. 

“Um portal é aberto com a pedra da lua de um tamanho especial uma vez a cada lua cheia, mas essa pedra mesmo em seu tamanho menor tal como é vendida nas lojas de artigos orientais, se for colocado no local exato, o que é muito raro, quase impossível, pode estabelecer sintonia com um portal.” -  Disse-me Luna.

Eduardo disse-me que depois eu saberia mais, que eles iriam me procurar. 

A cidade estava normal com o seu transito descendo a Rua General Osório. Havia passado somente alguns minutos após as seis horas da tarde. Um conselho: se for a Praça da Pedra, nesse horário não leve uma pedra da lua.

Por favor não postem fotos do lugar para não incentivar os aventureiros.


CONTOS DA SEQUÊNCIA

1- ZUMBIS EM JAMPA

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2 - O PORTAL DA PRAÇA DA PEDRA

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3-A LIVRARIA DA LUA

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23 de set. de 2021

O JOGO DE BURACO

A neblina fria da manhã anunciava a chegada do inverno. Pela porta da casa grande dava para ver a relva verde das plantações que ficavam logo a frente. Ao lado de um pé de seriguela ficava a porteira, por onde o vaqueiro Valdevino conduzia o gado para outros pastos que ficavam um pouco além de um monte que se erguia logo adiante.

Os pássaros da manhã se apresentavam no terreiro para disputar com outros as migalhas possíveis, enquanto as galinhas cacarejavam catando o milho que era jogado por Dona Elizabete, uma senhora de estatura baixa, cabelos negros e curtos, olhos exuberantes e delicados. Ela se movia pelo terreiro dando comida às aves, mas também cuidando de outras pequenas coisas que se desarrumavam durante a noite. O galo dava o seu canto triunfal da manhã.

Pois foi assim, naquela manhã quando ela estava cuidando das coisas do começo do dia que o seu marido chegou em casa, tonto, como algumas vezes se sucedia quando ia jogar o tradicional jogo de cartas chamado "buraco" na casa dos amigos. Ela se preocupava com essas jogatinas que envolviam certas apostas, mas ele garantia que não se preocupasse que eram quantias pequenas somente para manter o calor do jogo. Ele chegou e sequer tomou um banho, dirigiu-se para o quarto e caiu na cama. Ela conhecia essa rotina. Ele ficaria adormecido curando a ressaca até o final do dia. Quando o sol começasse a se por, ele se levantaria e perguntaria pelo café, que é claro, já estaria servido, embora já fosse a hora da ceia vespertina. Todos na casa, o caseiro e a dona Lourdes, que era uma pessoa da família, como se diz das pessoas que trabalham nas casas desde pequena e vão se incorporando a paisagem familiar; todos conheciam o ritual desses dias de embriagues. Não fazia mal. Dona Elizabete aceitava que todo homem deveria ter o seu espaço de liberdade.

Mas naquele dia em especial, tão logo o vaqueiro Valdevino, atravessou com o gado em direção ao morro dos jacus, que é uma ave que possui um grasnido rouco. Valdevino viu que na estrada lá longe vinha uma mulher, a pé, com uma sombrinha chinesa, de cor vermelha muito vistosa, e era uma mulher muito bonita. Valdevino esfregou os olhos, parecia uma artista, daquelas que aparecem na televisão que tinha em casa.

- O que seria aquela aparição? .Ele se perguntou.

Ele esperou. A mulher disse que se chamava Penélope, e foi perguntando onde era a casa de Reinaldo. O vaqueiro disse que a casa de Doutor Reinaldo era ali, mas que ele tinha chegado muito tarde de um trabalho que tinha ido fazer e não poderia atender. Ela disse que não se importava e que falaria com a esposa. Valdevino apontou apara Dona Elizabete que estava no terreiro. O vaqueiro se despediu com uma mesura tal a autoridade com que ela falou com ele; parecia mais uma princesa vestida em um curto e apertado vestido de seda preta. Valdevino continuou o seu caminho com o gado, vez ou outra dando umas olhadas para trás para contemplar aquela formusura na terra.

De lá do terreiro Dona Elizabete viu a mulher se aproximar. Deu bom dia, trocaram as saudações convenientes numa hora dessas. Dona Elizabete perguntou se ela queria um café. Penélope estranhou o convite, esperava que talvez acontecesse algo mais rude; foram para a mesa da cozinha que ainda estava posta com o cardápio próprio de uma fazenda: leite fresco, queijo de coalho e de manteiga, coalhada, bolo de milho, cuscus, ovos fritos, era um banquete.

De fato, era um café da manhã tradicional para o doutor Reinaldo, mas agora eles estava dormindo, então a mulher visitante disse que viera cobrar dele a conta que não pagara na noite anterior, pois ficara com ela e não quis honrar com o pagamento, que ela precisava do dinheiro. Dona Elizabete disse que não se preocupasse que ela pagaria. Dita a quantia, ela buscou a carteira do marido e deu tudo o que havia lá, provavelmente mais que o dobro da dividida.

Depois Dona Elizabete mudou de assunto e pediu que Penélope falasse de sua vida; entabularam uma conversa como se fossem duas amigas que se prestavam solidadriedade. Passado um tempo, Elizabete pediu que Penélope ficasse para o almoço, mas ela recusou.

-Fica para outra oportunidade - disse - e que não poderia retribuir a mesma gentileza em sua residência, pois não era uma casa adequada a uma mulher casada. Levantou-se e foi embora. Dona Lourdes que tudo assistia, somente declarou que a vida de uma mulher não era fácil.

Findo o dia, levantou-se Reinaldo senhor de si e do mundo. Estranhou que a sua carteira estivesse sobre a mesa, ao que a mulher disse que havia pago em dobro a dívida de jogo que ele deixara na noite anterior. Ele olhou estupefacto, e ela disse ,

- Sim, ela esteve aqui para cobrar a dívida.- e arrematou - jogando buraco, não é seu Reinaldo?


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12 de abr. de 2021

A LINGUA TU

 O que vou lhes contar aqui é algo estranho, que foi o modo como conheci um pequeno grupo de artistas encantados que moravam no Jardim da fonte do Theatro Santa Roza, em João Pessoa.  A trupe TU,  saltimbancos das estrelas. Os TU são criaturas pequeninas, semelhantes a gnomos, que falavam, um idioma muito engraçado, que é o que vou relatar aqui: o idioma TU.

Essa é uma língua muito divertida porque tem somente vocábulos com uma sílaba, e tudo, são algumas consoantes e cinco vogais. Tudo o que se pretende dizer depende da intenção, do contato com a pessoa que fala e da performance. 

Encontrei com eles muitas vezes, no final da tarde, próximo à fonte. Por alguma mágica da imaginação, eu fui levado para o seu mundo. Vou lhes explicando por partes, pois nesta viagem pude aprender com eles,  na prática, o idioma TU. 

PRONOMES

A primeira coisa foram os pronomes.

-MA, disse-me um deles apontando para si mesmo.

E depois

-ME, apontando para mim.

Depois apontou para o restante do grupo e fez um gesto com a mão incluindo-nos todos e disse:

-MI.

E apontando para as pessoas que circulavam na Praça Pedro Américo, que fica defronte ao teatro disse

- MU.

Assim aprendi que todos os pronomes, pessoais, possessivos, demonstrativos são formados apenas pela letra  M e as cinco vogais. Por exemplo: MA; ME; MI; MO e MU, significam todos os pronomes possíveis, e as vogais o grau de proximidade com de fala ou com quem é ouvido dependendo da intenção e da situação. Assim, MA pode significar eu, meu. As vogais funcionam assim, na sequência AEIOU: o "A" é sempre muito próximo do foco da palavra e o "U" é mais distante. Assim, se eu falo de mim, MA se refere a mim mesmo e MU a uma pessoa ou algo distante. A regra de uso depende do bom senso e do contato visual. Se queremos dizer nós, então falamos ME, ou MI, mas se queremos dizer eles, dizemos MU, que está muito longe de quem é o foco da fala.

No uso das outras classes de palavras é importante ressaltar que dependendo do contexto e da performance as cinco vogais fazem o papel dos pronomes.


SUBSTANTIVOS CONCRETOS

 A outra classe de palavras são os substantivos concretos formados pela consoante T: TA; TE; TI; TO; e TU, que se referem a todos os substantivos concretos. a mesma regra das vogais, para coisas distantes e próximas.

Por exemplo:

A fonte do Theatro onde estávamos é TA.

A estátua de Augusto dos Anjos que fica na Praça é TE.

A estrela Hamal da constelação de Aries é TU.


SUBSTANTIVOS ABSTRATOS

As palavras abstratas são formadas com a consoante S e as vogais. As palavras dependem da performance para significarem se são alegria ou tristeza.

Assim para dizer que é alegria em mim a palavra é SA com a performance de alegria.

Então entendi o porque deles se chamam SU, com a performance de que são artistas de teatro, dança e circo, quer dizer algo que está muito abrangente.


ADJETIVOS

 Os adjetivos que são simbolizados pelas palavras com D, DA, DE DI, DO, DU, valendo a mesma regra das vogais, sendo que o diminutivo tem a performance de algo diminuindo e o superlativo a performance de algo crescendo.

Então se quero dizer que algo distante de mim é muito grande vou dizer DU com a performance de algo grande, e se é pequena fazemos a performance de algo pequeno.


CONJUNÇÕES

Tem as palavras para  emendar as coisas na performance que funcionam como conjunções e que usam a letra K e as cinco vogais.

Se estou dizendo de duas coisas eu falo TA KA TA, com a performance adequada.


PREPOSIÇÕES

Todas as preposições  tem a letra N como formadora , ainda obedecendo a regra das vogais e da performance.


INTERJEIÇÕES

Temos também as interjeições que tem a letra X, vogais e performance. Se é boa ou ruim, de alegria ou de dor, depende da performance. 


VERBOS 

Os verbos são expressos pelas letras P, R e F para os três tempos verbais, passado presente e futuro, respectivamente.

Todos os verbos no tempo passado são formados pela letra P,  vogais e performance. 

Todos os verbos no tempo presente são formados pela letra R,  vogais e performance. 

Todos os verbos no tempo futuro são formados pela letra F,  vogais e performance. 


A frase Vá ao teatro traduzida para a língua TU fica:

RE NE TE, e a respectiva performance.

A frase Vou ao teatro traduzida para a língua TU fica:

RA NA TA, e a respectiva performance.

Como regra geral as vogais de tudo numa frase concordam com o verbo, podendo ter exceções conforme a necessidade da performance.


FORMAÇÃO DE FRASES

O idioma TU é uma língua que depende da presença , não sendo possível traduzi-la sem acesso à performance. 

O povo saltimbanco TU fala junto com o corpo em um processo de performance. Eu estive com eles por algumas  vezes, e fui vendo as possibilidades de aprendizagem de sua língua.  Fora a parte escrita das letras e sonoridades, eles não me ensinaram completamente a codificação corporal, dizendo-me que cada grupo deve conhecer-se a si mesmo para desenvolver esta outra parte. 

Por fim recebi a autorização para contar para vocês sobre a língua deles e a permissão para que quem quiser possa usá-la. Eu pude assistir muitas coisas enquanto estive com eles, que sabem que o mais importante na comunicação é algo que ocorre numa relação de cumplicidade entre os interlocutores, que é preciso estar em comunhão para que tudo funcione. Perguntei se não era possível saber do seu passado. Eles me disseram que essas coisas precisavam ser ensinadas através da performance, que os livros eram escritos no corpo de cada pessoa; assim o conhecimento era algo que respeitava a vida e servia a todos. No mundo deles vida e arte se confundiam. 

Vale a pena conhecer os TU. Eles me disseram que se você praticar a sua língua, eles entram em contato automático com o grupo, que não é necessário, a princípio, que todos saibam, mas que um sabendo da língua, pode usá-la  para comunicar-se através da performance estabelecendo níveis profundos de troca espiritual. 

O PERIGO DOS LIVROS ANTIGOS

Sobre ser grato. Não é uma coisa fácil de se praticar. Todos acham que isso é uma coisa automática, que todas as pessoas são gratas por natureza. Parafraseando o que escreveu Descartes no início de seu Discurso do Método, todos já se acham com a dose certa de gratidão, que não é preciso nem mais se preocuparem com isso.

Não quero aqui comentar sobre a gratidão nos outros, pois cada um deve cuidar de si mesmo, e não é prudente, nem mesmo possível adentrar os mais profundos abismos de cada um para perscrutar o seu nível de gratidão. Eu digo de abismos profundos, porque sinto que a gratidão habita os lugares mais profundos de nosso ser, não é um sentimento de superfície, tal como na comunicação diária, quando dizemos, grato por isso ou aquilo. 

A experiência da gratidão. Isso foi o que me aconteceu numa manhã, cedinho, quando fui ao mercado fazer as compras da semana. Morava sozinho em uma casa grande, antes é bom que explique esse sozinho, pois morava em companhia de uma amiga. 

Mas como assim? Essa pessoa com quem o senhor vivia não era uma companhia? Podem objetar algumas pessoas com asco do meu comportamento desprezível.

Antes de explicar o que aconteceu no mercado é preciso que esclareça quem era essa minha amiga, mas antes é preciso que lhes fale de um livro que encontrei em um sebo de livros antigos que fica na Praça da Bandeira na cidade de Campina Grande. Era um livro de capa de couro, já escurecido pelo tempo, mas bem conservado. Gosto de livros velhos. Ao pega-los sinto-me reconectado com outras pessoas que viveram em outras eras, é como uma porta para outros mundos, e esse era o título, "A porta do outro mundo", escrito em português, havia sido publicado no século XIX, na cidade de Lisboa. Na folha de rosto do referido volume havia uma inscrição feita a caneta bico de pena com uma tinta antiga: "Cuidado com este livro. Devolva-o imediatamente à sua estante". Convenhamos que não se diz isso a um espírito curioso como o meu; imediatamente coloquei-o debaixo de minha atenção, mas para não chamar a atenção do livreiro, coloquei-o junto a outros volumes para despistar o meu interesse. Essa é uma das estratégias para se comprar livros em sebos antigos que não tem os seus preços tabelados em um computador. Para minha surpresa o sebista deu-me o tal livro como brinde e ficou muito feliz com o fato de eu ter me interessado por ele.

Nesse livro, que ainda está em minha estante, mas devidamente plastificado para evitar que algum incauto o abra e leia alguma de suas linhas. Hoje diante das tecnologias maravilhosas dos ebooks as pessoas desdenham dos livros feitos à moda de Gutemberg. Pode parecer ridículo isso que vou escrever,mas esse Gutemberg a que me refiro não é algum influenciador digital de algumas da redes socias, e sim o Gutemberg que inventou a imprensa no século XV. Os livros de papel tem algum poder neles, algo mais sutil que a tecnologia não consegue imitar. 

Nesse livro estava descrito os modos como um ocultista português descobriu os meios de visitar os universos paralelos. Já na introdução o autor, cujo nome é melhor que não saibam, advertia o leitor para interromper a leitura. Ele pedia que desistissem, que não lessem as páginas seguintes, que a simples leitura poderia ser uma experiência maravilhosamente terrível. Porém, pensei que se fosse algo assim tão assustador, por que é que ele escreveu o livro e publicou-o? Essa resposta eu somente vim obter depois, muito depois.

A leitura daquele livro levou-me  a mundos inimagináveis; lugares onde a tecnologia digital é algo primitivo, pois existem estados de energia muito mais sutis do que, o  zero e o um, da lógica binária. Eu que pensava que o ocultismo era uma fantasia da literatura, descobri que havia muitas outras coisas por trás daqueles símbolos e rituais que mais tinham a ver com matemática e física avançados. Fiz muitas viagens e estava muito feliz com as minhas descobertas, mas como nem tudo são flores, cometi um grave erro, deixei o livro em minha sala sobre a estante da sala, ao lado da televisão. Uma amiga, que sempre vinha me visitar, era avessa a livros de papel, aliás tinha verdadeiro asco por qualquer texto que tivesse mais do que 140 caracteres. Ela inadvertidamente abriu o livro, por coincidência, no capítulo que tinha como título "A primeira porta" e não voltou mais. Os livros antigos são perigosamente desafiadores.

 Depois de 3 anos, daquele encontro inicial dela com o velho alfarrábio, ela viera morar definitivamente comigo, pois a família depois de tentar todas as psicoterapias e internações, desistiu dela, e como ela sempre falava de mim como uma última lembrança de "lucidez" antes de sua "loucura", coube a mim cuidar dela. Não falava; ela queria ler; já tinha lido todos os livros de minha biblioteca e para o meu espanto leu três vezes até o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, verbete por verbete cuidadosamente. Isso era espantoso para alguém que conhecia um único livro, que era o livro sagrado de sua religião, mas que lia na superfície das letras, misturadas à névoa criada pelos dirigentes de seu culto. 

Na leitura daquele livro antigo ela tivera acesso aos universos paralelos, viajado no tempo e conhecido novas pessoas. E um dia, ela me presenteou com um folheto de cordel que havia escrito: "A porta da felicidade". Pense em um susto; o meu foi maior quando vi aquilo em minhas mãos. Depois eu ajudei-a a publica-lo, mas ela foi além; montou uma barraca de poesia na Feira, onde expande essas portas para outras pessoas. 

 Naquele dia na feira, ao aproximar-me de sua barraca de poesia, vi que havia um novo título pendurado em um cordel. Ela olhou-me com aqueles olhos grandes e negros, pegou um exemplar, beijou-o e me deu. O título do livreto era "A porta da Gratidão". Aquele velho livro havia despertado nela o grande poder da leitura, e agora ela lia livros, pessoas, a natureza, a sociedade, o universo. Então, depois de todo esse tempo ela falou. Disse "Gratíssima". Eu é que sou grato pelo seu olhar que enxerga outros mundos possíveis. 

 

26 de mai. de 2020

A GARRAFADA CALMANTE



Naquele dia Kátia amanheceu, como se diz popularmente, com vontade de atirar pedra na lua, e ainda era somente o terceiro dia forçado da quarentena para se evitar o contágio com o vírus mortal.

Ela olhou para o desenho completo de sua casa, pois tinha feito um mapa de possibilidades que poderiam ser utilizadas como uma rotina de lugares: no primeiro dia ela começaria pela sala, faria algumas coisas com jeito de sala; depois iria até o jardim olharia para as suas flores; depois a cozinha; por fim o quintal. Ela  criou um nome para cada um desses dias, um novo calendário, como se o tempo estivesse sendo inventado naquele instante. Feito o plano, bastava executa-lo.

No entanto, quando acordou-se no primeiro dia, como tudo se parecia com o domingo, preferiu ficar na cama mais um pouco. Só muito depois levanto-se e tomou o  café da manhã, e seguiu-se um dia de séries da tv. Quando se deu por si, estava com fome e o sol estava se pondo. O planejamento do primeiro dia havia furado. Ela foi dormir na madrugada do dia seguinte, e conseqüentemente o segundo dia não deu certo em nada. O plano dos dias desapareceu. O calendário  que a colocaria em um outro tempo desfez. Ela se sentiu  perdida dentro de um domingo que se repetia a cada amanhecer.

Aqui é preciso esclarecer que a nossa personagem é uma criatura que tinha o hábito de controlar tudo. Assim, achava que com planejamento, a quarentena iria ser um passeio em um parque temático. Como tudo dava errado, descobriu que sozinha  tinha que manter a disciplina consigo mesma, pois a sua disciplina precisava de outros que lhe obedecessem as ordens; sozinha estava diante do caos.

Sem a faxineira a casa foi se enchendo de lixo;  a arrumação das coisas foram ficando fora da simetria que tanto adorava. Nisso, resolveu que precisava aumentar o consumo de seus comprimidos especiais, mas todos já ouviram falar desses remédios que muitas pessoas tomam para controlar a ansiedade.

A tragédia é que, quando amanheceu naquele dia, verificou na caixinha de remédios que não havia mais nada. Pensou em ir comprar algo na farmácia, mas escutando na TV as noticias alarmantes. Com a sua hipocondria latejando, resolveu que iria ficar em casa, deitou-se, mas apenas se revirava na cama.

Pensou em fazer alguma coisas para  controlar a ansiedade, mas precisava de algo para tomar. Foi aí que teve a idéia de assaltar o jardim da vizinha, a cuja horta já tinha sido apresentada.  Ela sabia das ervas medicinais, algumas delas extremamente calmantes e outras que cujos efeitos desconhecia desconhecia. Ela descartou a possibilidade de pedir, para evitar qualquer contato social capaz de fazer a transmissão do vírus. A solução era fazer uma doação secreta, ou melhor um furto, silencioso, que evitasse qualquer proximidade.

Deixou que anoitecesse. Ficou atenta até que a casa da vizinha silenciasse de vez. Lá pelas horas quietas da madrugada esgueirou-se pelo muro, que não era alto. Ela vestiu-se de forma especial: uma calça preta ; camiseta preta e um capuz improvisado com um saco de presente de perfume, que era também negro. Assim estava pronta para a tarefa com a sua roupa de ninja. Ela encostou uma cadeira na parede,e dando um impulso montou no muro, mas quando ia saltar enganchou-se em um prego que ficou agarrado na sua calça. Ela jogou o corpo para o quintal alheio mas ganhou um rasgão na calça que deixou as sua calcinhas à mostra.

Ela incomodou-se com a perda de integridade de sua fantasia, mas agora era tarde. O mais importante era pegar as folhas  aproveitando a escuridão. Foi pegando um pouquinho de folhas de cada planta dos canteiros juntando tudo em um único saco. Para voltar aproveitou-se de umas tábuas que estavam recostadas em um canto.

Quando chegou em casa, pegou as folhas e colocou-as todas em uma panela. Sei que isto parece um absurdo, mas o seu grau de ansiedade era tal, que o mais importante era o chá. Fez uma panela cheia, ou melhor, um caldeirão. Ficou um liquido escuro e cheiroso, de um aroma relaxante e hipnotizante. Não esperou esfriar, tomou um copo, deixou derramar um pouco no chão formando uma poça. Foi para a cama e reclamou que não estava sentindo nenhum efeito.Apagou. 

No dia seguinte estava andando em câmera lenta. Durante a noite os gatos da vizinha e o seu cão haviam bebido do liquido que havia sido derramado. Os gatos estava miando com uma certa lentidão, era um miauuuuuuu tranquilo. O seu cãozinho estava latindo em câmera lenta com um auuuuuu entre pausas longas.  O sol estava lindo. Ela via o beija flor beijar o seu nariz, a sua mão parecia de borracha, então ela pensou que ainda estivesse sonhando, quando o seu celular tocou e uma amiga perguntou: “amiga, você tem rivotril?”, E ela disse, “tenho uma garrafada”, mas a amiga não entendeu nada.Deus sabe que tipo de ervas havia no jardim da vizinha.

11 de abr. de 2020

ZUMBIS EM JAMPA

Era noite, uma daquelas noites frias de Jampa. Você que não é de Jampa deve estar se perguntando onde fica este lugar. Bem, fica aqui na cidade de João Pessoa; é um mundo paralelo, tão colado ao mapa original que até alguns pontos turísticos da cidade ostentam um letreiro de madeira com os dizeres “Eu amo Jampa”. Há os que dizem que é uma alusão a Sampa, canção de Caetano Veloso em homenagem a São Paulo; outros defendem que é uma homenagem aos jambeiros do Bairro de Jaguaribe; uns poucos dizem que é por causa de Tampa, cidade da Flórida na América do Norte onde sonham morar.Uns últimos galhofeiros acham que é por causa da rima.

Voltemos a Jampa, para uma noite na qual o clima estava indeciso, se chovia ou não, e as estrelas no céus jogavam aquele charme estranho entre as nuvens. Um vento frio e intenso sibilava pela janela do ônibus. Eu estava recostado ao vidro curtindo a beleza da cidade, que é tão agradável; passamos pela lagoa do Parque Solon de Lucena, que após as reformas, que a deixaram ainda mais bonita, tornou-se uma jóia que vai sendo redescoberta pela população.

O ônibus fez a curva para descer a avenida do viaduto da Miguel Couto, sempre uma experiência estranha, vezes ou outra me sentia como partindo para coisas fora da realidade; quando entrava pelo buraco daquele viaduto, via passar pelas janela as pinturas de Chico Ferreira, enquanto o veículo enfiava-se no chão e o casario ia ficando na superfície. Era uma experiência muito estranha, como se afundasse em um portal.

Altas horas e naquele horário o ônibus estava quase vazio, uma sensação de solidão e sempre aquele desejo de chegar logo ao outro lado; entramos na parte mais escura do túnel que passa por baixo de um Centro Comercial conhecido como “terceirão”. Eu ficava imaginando o que estaria acontecendo lá em cima enquanto uma vida passava por baixo. O motorista conduzia o ônibus desembestado como sempre, até parecia que estávamos num brinquedo de parque de diversão. O coletivo saiu da escuridão e avistei as costas do prédio do Theatro Santa Roza; do lado direito a silhueta da cidade antiga.

O motorista freou bruscamente nos jogando a todos como em um liquificador, para um lado, e para o outro, até batermos na parede de um edifício que ficava em frente onde tinha escrita a pichação: “kiss my ass”. 

O meu reflexo estava distraído; fui tomado de surpresa e jogado para a frente com violência. Sofri uma escoriação no braço que estava colado a janela. Tive pouca sorte.

Já um outro passageiro; vou chama-lo de Eduardo; era um homem forte, estatura alta, cerca de um metro e oitenta, aparentava 40 anos; parecia que estava atento aos modos do motorista antecipando-se e reagindo ao acidente, de modo que não sofreu nada. 

Já uma moça, que chamarei de Luna, aparentemente frágil,cerca de 21 anos, pele muito branca, cabelos negros longos, seios grandes em um decote sensual que revelava uma tatuagem entre eles, lábios pequenos e bem desenhados pintados com um batom de intenso vermelho. Dá para perceber que quando entrei no ônibus a figura dela chamou-me a atenção. Ela estava sentada mais atrás e eu preferi ir para os assentos da frente próximos ao motorista. No momento do desastre ela foi jogada para a frente indo parar próximo ao parabrisa frontal. Ela machucou-se muito, mas não tinha nenhuma fratura; um corte na testa molhava o seu rosto de sangue.

Todos os passageiros estavam em choque.

O motorista havia desmaiado.

No ar apenas um zumbido, semelhante àquele que escutamos quando batemos com a cabeça em algo. O que vou contar a partir de agora é algo que aconteceu em Jampa; provavelmente isso jamais ocorreria em João Pessoa. Não é seguro para os objetivos turísticos da cidade que coisas assim aconteçam.

Este foram os fatos.

Luna mesmo machucada percebeu que um zumbi subia no ônibus. Ela pegou uma pistola, que trazia no bolso da jaqueta jeans e atirou, mas falhou.

O zumbi dirigiu-se para mim, pois o motorista estava apagado; não lhe deu atenção. A criatura morta-viva, que poderia ter saído de um filme de Zé do Caixão, agarrou-se a mim tentando morder-me. Eu dei-lhe alguns chutes afastando-o um pouco.

Eduardo, que estava mais atrás, jogou uma maleta artesanal de madeira, dessas que se vende na feira da cidade de Campina Grande. É um objeto duro. Ele mirou na cabeça, mas errou o alvo, então eu bati no zumbi com a barra da marcha de câmbio deixando-o um pouco atordoado.

Luna atirou e novamente errou. Eduardo recuperou a maleta e recuou para o fim do ônibus próximo a janela  de emergência. O zumbi continuou se aproximando.

Eu vi próximo a Luna uma daquelas estrelas com lâminas usadas nos filmes de lutas marciais chamados Shuriken. Peguei-o e atirei no zumbi que ficou um pouco mais lento com aquela coisa gravada na testa.

Eduardo pediu a arma a Luna. O monstro continuava vindo. Eduardo com grande habilidade segurou a arma e já foi acertando o bicho do mal, que recuou saindo do ônibus abalado. Luna pediu a arma de volta e atirou terminando de matar a coisa.

Respirei aliviado, mas quando saí do ônibus vi que havia mais três zumbis se aproximando.

Luna fez dois disparos e matou o mais próximo. Os outros dois continuaram se aproximando. Então Eduardo ajudou Luna a sair do veículo. Luna me passou uma arma elétrica; eu disparei-a, mas somente fez cócegas no cachorro da mulesta. Vou explicar isso, “cachorro da mulesta” é uma expressão nordestina, multi-uso, que pode ser aplicada a pessoas e situações desagradáveis. Eu pensei comigo mesmo; “estou ferrado”. Aquela coisa me agarrou, e eu me sacudia tentando me lembrar das artes marciais cinematográficas. Luna atirou acertando o ombro do Zumbi. Fiquei gelado; ela podia ter me acertado. Mas aproveitei o impacto do tiro e me desvencilhei. Gritei para Eduardo me socorrer. Ele então pegou a barra da marcha de câmbio que estava caída por ali e esmagou o zumbi. Estávamos tão atônitos que esquecemos da moça. Escutamos os gritos dela tentando nos avisar do terceiro zumbi. Ela atirou matando a coisa. 

Então Eduardo começou a falar com Luna sobre a invasão de criaturas das sombras. E eu não entendia nada daquele papo. 

Nisto, um outro zumbi veio da cerração. “Devem existir muito mais” disse Eduardo . Luna atirou, e errando o alvo o zumbi aproximou-se de modo que ela colocou a pistola dentro da boca dele e disparou até que a cabeça do ser diabólico estourasse; o corpo  caiu como uma estaca quebrada.

Escutei quando Luna disse que era esperado um ataque em Jampa, enquanto isso chegaram rápido dois furgões  que levaram os corpos dos zumbis. 

Somente algum tempo depois é que se aproximaram os curiosos, a polícia e os carros de socorro. Não houve mais testemunhas.  O fato é que eu nunca mais me arrisquei a andar por lá naquele horário. E se aquilo for mesmo um portal? Se alguém quiser se arriscar que vá por sua própria conta. Em Jampa acontecem coisas estranhas...